terça-feira, 29 de janeiro de 2008

FULL METAL JACKET


Ainda nos encontramos na fase da recruta, ainda não fomos enviados para o cenário de guerra, continuamos a engraxar as botas, a ultrapassar obstáculos, a limpar as armas, a acertar o passo. Quando formos enviados para o cenário de guerra, já que teremos sempre de ser enviados, não podemos fazer as nossas próprias guerras, como quisermos, onde quisermos, contra quem quisermos, quando formos enviados, dizia, bastar-nos-á um carregador cheio de balas. É tudo quanto necessitaremos para que a guerra possa ser feita. É tudo. Nem sequer precisaremos de um inimigo. Com um carregador cheio de balas a gente inventa um inimigo, a gente faz uma guerra. Se for preciso, voltamo-nos contra nós próprios, fazemos alvo das nossas frustrações, dos nossos recalcamentos, da nossa fúria acumulada, como uma dor conservada até ao limite dos prazos em que as dores expiram. Porque as dores têm um prazo, têm um dia de deixarem de ser dores para passarem a ser outra coisa qualquer, talvez uma simples margem de erro ou mesmo um prazer. É provável que o prazer seja uma dor fora de prazo. Enquanto a dor não se estragar, enquanto for consumível, nós continuaremos a engraxar as botas, a ultrapassar obstáculos, a limpar o soalho das casernas, a organizar os objectos, a treinar a pontaria. Até onde aguentaremos a dor, não sei. Os limites suportáveis da dor são subjectivos, adaptam-se à indiferença com que cada um lida com os seus sentimentos, com as suas emoções, com a sua racionalidade. Em certos casos, o limite suportável da dor é um grito. Noutros casos é um poema. Há também quem tenha por limite suportável da dor um assobio. Sei mesmo de um coveiro que tinha por limite suportável da dor uma mijadela nas campas que abria, como se quisesse tratar a cama dos mortos com o poder curativo da urina, como se lhes estivesse a purificar o caminho, como se lhes fosse queimar as feridas. Um morto é um morto. Qual será o limite suportável da dor de um morto? Dirão a dignidade com que morre, como se houvesse dignidade na morte. Julgo que o limite suportável da dor de um morto está no modo como os vivos lhe olham a morte, no modo como lhe preparam o esquecimento, no ódio ou no amor com que o abandonam aos vermes. O limite suportável da dor de um morto está nos vivos. Talvez o limite suportável da dor dos vivos esteja nos mortos. Porque há sempre uma certa indiferença na espinha curvada, na conformação com as regras do jogo, há sempre uma certa indiferença na vontade que se predispõe ao adestramento. É assim desde muito cedo, desde que aprendemos a andar de pé, desde que aprendemos as primeiras palavras, reagindo aos estímulos que nos preparam o cenário da observação e da imitação. Árduo será o caminho daquele que ouse transgredir todo esse percurso, buscando uma razão para os seus olhos secos de indiferença, tentando recuperar a verticalidade da espinha, deixando sobre o tapete a sujidade das botas, recusando-se a limpar as botas, ficando apenas e tão-só gozando o ritmo das suas dores. Se a história não se deixa marcar pela insignificante resignação dos desesperados, então que marquemos a história com o nosso sofrido desespero. Basta-nos um carregador cheio de balas, um gesto afirmativo, uma recusa. Mesmo que desse lugar sem nome ressoem as gargalhadas estridentes dos mortos à sombra dos nossos gestos. Afinal, a única coisa que temos a perder já está de todo perdida: a nossa própria vida.

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