quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

TRATAMENTO DE CHOQUE

A americana Karen Finley (n. 1956) é performer, gravou alguns discos, “artista de variedades” e mais um punhado de laborações entre as quais se destaca a escrita de livros. Em 1990 publicou este Tratamento de Choque, traduzido para português por Jorge P. Pires e publicado, em 2003, pela Frenesi. Tal como o título indica, a escrita de Karen Finley tem aquela característica peculiar de quem escreve num regime catártico onde só não vale arrancar olhos e rastejar aos pés de um sublime que se contente com plumas metafóricas e frases perfumadas. As ilustrações que acompanham os textos são tão incisivas, espontâneas e enérgicas quanto os próprios textos. Esses, aparecem divididos em quatro conjuntos: O Constante Estado de Desejo, A Família que Nunca Existiu, Citações de uma Fêmea Histérica, Orações Modernas, Mantemos as Nossas Vítimas Prontas. Podem classificar esta escrita de obscena, abjecta, pornográfica, irrisória, iconoclasta e heterodoxa, que ninguém poderá contestar-vos. Tudo porque a realidade que lhe serve de objecto é muito mais abjecta, obscena e pornográfica do que a escrita que a encena. Entre os temas focados nestes textos, estão violações, suicídios, o aborto, relações de poder e jogos de domínio, sexo, a vida doméstica, estilos de vida, desordens familiares, a educação, retratos sociais decadentes, o lado mais sórdido do mundo político, etc. «E eu digo «Doutor, a vida é um tratamento de choque»» (p. 53). São retratos da vida, pintados sem contemplações através de um prisma feminino onde a condição da mulher nas sociedades burguesas, tipicamente machistas, se evidencia pela assunção de um lugar que é o lugar da vítima, da violada, da deslocada, da estigmatizada. Esse estigma é o da mulher reduzida à sua condição materna, submissa de um conceito de família que a adestra no sentido de uma recusa de si própria em função dos filhos e do marido: «Proponho que as mulheres regressem à Natureza e mijem também em público. Usem saias amplas e compridas sem nada por baixo, abram as pernas, deixem-no escorrer e vão-se embora. Mijem em todos os museus de arte que não representem equitativamente as mulheres e as minorias. Mijem em todas as cabinas de voto onde haja apenas machos brancos para eleger, e mijem em todas as estações de rock clássico que apenas passem música de grupos de machos brancos. Depois, quando as mulheres obtiverem finalmente o direito de mijar em público, poderemos reunir-nos para grandiosos encontros de mijo sobre os relvados da Casa Branca» (p. 94). O alvo de Karen Finley é toda uma estrutura social que se estende do Vaticano aos EUA, baluarte do capitalismo e, por consequência, da exclusão das minorias. É a Eva condenada quem grita nestes textos. Não é pois de estranhar que a mulher apareça colocada no mesmo saco dos excluídos, na medida em que aqui ela ainda é tomada como uma máquina parideira ao serviço da estrutura familiar. Circunscrita à sua função materna, a mulher fica encerrada na mesma masmorra dos escravizados, dos explorados, dos condenados ao ostracismo. Ela torna-se apenas objecto de desejo, propriedade privada dos homens, figuras dominadoras em torno das quais a sociedade capitalista foi sendo arquitectada. «E esqueçam Deus e a religião / porque tudo quanto fazem é representar as fantasias dos homens / que perpetuam o ódio às mulheres e aos gays / Quero um deus homossexual / Quero uma deusa fêmea / Quero um deus lésbico / quero um deus negro / Quero uma deusa morena / Quero um deus amarelo / Quero uma deusa vermelha / Quero um deus à imagem dos humanos reais, aqui, agora» (p. 126). O que se revela extraordinário nestes textos de Karen Finley é a sua componente teatral. Eles estão escritos como quem os berra a alta voz, como quem grita, como quem, impelido por uma explosão há muito contida, já não consegue reprimir ou recalcar a dor que transporta dentro. Mas importa esclarecer que quando me refiro a uma componente teatral não quero com isso estetizar uma escrita que não aceita esse tipo de rotulagem. Pretendo antes relevar o facto de serem textos que ostentam uma componente oral estrondosa, sem qualquer tipo de concessão, sem pruridos morais. A moral destes textos é a paisagem que encenam, ou seja, é a paisagem de um mundo diariamente maquilhado e disfarçado nas suas injustiças, contradições e arbitrariedades. O que a autora de Tratamento de Choque faz, como quem limpa a maquilhagem de um rosto, é mostrar-nos as rugas e os pontos negros, as cicatrizes e os eczemas da sociedade em que vivemos.

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