quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

VIEIRA

Muito longe de ser a melhor edição dos sermões do Padre António Vieira, este foi o meu pórtico para a catedral da palavra que é a obra de Vieira. Trata-se do volume 458 da colecção de livros de bolso da Europa-América. Muito se tem falado deste padre nos últimos dias, muito mas sempre pouco se tivermos em conta de quem se trata. E logo eu, que detesto padres, assim desfeito nas minhas inexoráveis contradições. António Vieira nasceu na freguesia da Sé, em Lisboa, a 6 de Fevereiro de 1608. O pai levou-o para o Brasil, decorria o ano de 1614. Contra vontade paterna, saiu de casa na noite de 5 de Maio de 1623 para se entregar de corpo inteiro às missões evangelizadoras dos Jesuítas. Estudou os costumes e as línguas dos nativos, os quais sempre defendeu em contexto muito adverso. Teve uma intensa vida diplomática, repleta de casos e de controvérsias, que culminou com a perseguição, prisão e condenação levada a cabo pelo Santo Ofício. Mas ainda antes do silenciamento final, a 17 de Junho de 1654, Vieira pregou o mais famoso dos seus sermões: «Sermão de Santo António aos peixes». Trata-se de um daqueles textos fundamentais que deveria ser obrigatório a qualquer candidato a escritor. O tema central é o da corrupção, logo enunciada no início do texto a partir de uma epígrafe "roubada" ao Evangelho de São Mateus: «Vos estis sal terrae». Questiona-se Vieira: «O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será ou qual pode ser a causa desta corrupção?» Eis uma questão colocada há 400 anos e que, pelos vistos, não nos larga. Perante a indiferença dos homens, Vieira faz como Santo António já havia feito: prega aos peixes. Aponta-lhes as qualidades (ouvem e não falam), denuncia-lhes os defeitos: «A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande». Perfeito retrato do mundo, um retrato impiedoso, implacável, certeiro, de tal modo certeiro que ainda hoje o reconhecemos como sendo nosso e lhe atribuímos as qualidades de todas as grandes obras: universal, sem tempo. A gente lê Vieira e vê Leonardo da Vinci, pois nas palavras de Vieira reside esse exemplo das obras imortais. No entanto, olhemos agora para nós: ridículos. Olhemos para nós, aqui, a lermos os textozitos uns dos outros, tão ridículos, e a dispararmos palavras, comentários absolutamente patéticos, como se fosse importante o que temos a dizer. E ainda mais ridículos os que julguem ser importante o que têm a dizer. Olhemos para nós, tão patéticos, ínfimos, ridiculamente ridículos, a perdermos tempo com palavras, questiúnculas, pseudo-debates, febrilmente opinativos, a desperdiçarmos a vida nestas pelejas inconsequentes, em textos votados ao esquecimento, caídos já na morte apagada do esquecimento. Efémeros, patéticos, ridículos. Olhemos para nós, miremos a nossa desgraça, somos todos tão risíveis, caricaturas de Quixote com moinhos cibernéticos. Julgaremos possível um olhar atento, um ouvido perscrutador? Nem os peixes. Que imbecilidade nos contamina? Só nós, para darmos algum crédito aos nossos sermões. Só mesmo nós, encafuados nas salas poeirentas das nossas casas, rodeados do pó dos livros, num mundo ainda mais absurdo que os nossos cus gordos sentados defronte a um monitor. Ridículos. Somos todos risivelmente ridículos. Podíamos andar a limpar matas, a distribuir sopa aos pobres, a construir castelos de areia, podíamos estar numa bela esplanada a ler um bom livro sem termos necessidade de contar as páginas desse livro a quem quer que fosse, lê-lo pelo simples prazer de ler um livro, não pela vaidade de o citarmos, divulgarmos, comos e fosse relevante o facto de termos lido um livro, de termos visto este ou aquele filme, de andarmos no mundo como as formigas andam nos carreiros e os carneiros andam nos rebanhos. E chamamos nós liberdade a esta vida domesticada, a estes comportamentos todos tão formatados? Somos autómatos, autómatos adulterados, de quando em vez, por um sorriso rasgado ou uma lágrima furtiva. Mas irremediavelmente autómatos. E ainda por cima ridículos. Ai se soubéssemos o preço da fome, se conhecêssemos o custo da miséria mais miserável de todas. Ai se estivéssemos longe destas janelas, ai se fôssemos não caricaturas de Quixote com moinhos cibernéticos, mas moinhos quixotescos de caricaturas reais. Ai se fôssemos um acto concreto, não um sonho, não uma miragem, mas já tão-somente o deserto que somos e insistimos iludir com os nossos debates fundamentais, as nossas questões fulcrais, os nossos discursos estonteantemente expressivos, retóricos, inúteis, as frases de belo efeito. Olhemos pois para nós, na sombra do padre, e miremos reflectida na sombra a luz da nossa absoluta desgraça e da nossa incontornável superficialidade.

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