terça-feira, 9 de setembro de 2008

CONTRA A MANHÃ BURRA

Deve ter sido há mais ou menos sete anos que conheci Miguel-Manso (1979), em Almeirim, durante a primeira actuação dos Ventilan. Foi com gosto que, alguns anos mais tarde, lhe acompanhei a escrita em weblogs tais como “Baixa-Shiatsu”, “Largo do Karma”, “Rua Luxuriano”. O Miguel escreve com paixão, é dono de um sentido de humor apurado, polvilha os textos com uma cultura viva, fruto de uma experiência de vida rara em autores da sua idade. Notei sempre nos seus posts aquele tom agradável de quem sabe rir-se dos absurdos da vida sem lhes retirar a gravidade que merecem, uma certa nostalgia das coisas belas ou, se preferirem, a melancolia de quem olha o mundo com o peso do fim sobre os olhos. Quem olha desse modo, prefere focalizar-se nos pormenores, nas pequenas coisas que a vida vai oferendo para nos distrair do fim. Contra a Manhã Burra ostenta na capa uma dessas pequenas coisas. No caso, um “carimbo comprado numa loja de velharias em Gent”. Os poemas deste primeiro livro estão repletos de impressões afectuosas, passagens, momentos, fogachos de uma vida ainda curta mas atenta. Agrupados em duas partes – “Abrindo a Cadeira de Pano” e “Fechando a Cadeira de Pano” – provocam-nos pela ousadia dos formatos, pedem-nos que entremos neles como quem entra num navio para uma viagem desconhecida. São poemas-viagem marcados pelos odores, pelas “breves imagens vivas” (Breton) que preenchem a memória dos viajantes, pelos momentos, pelas pessoas, por efémeras sensações. Foram escritos entre Lisboa e Paris, mas transportam-nos até praças marroquinas, ruas italianas, avenidas espanholas. Na primeira parte encontramos múltiplas referências, por vezes estranhamente inconciliáveis. Logo num dos primeiros poemas aparecem alusões a Alfredo Saramago, Laurie Anderson, Maradona. O que há de comum entre eles? A naturalidade de quem escreve escrevendo-se. Estamos com o poeta numa rua do centro histórico de Nápoles e é através dos seus olhos que podemos estabelecer estas associações, como quem regista as imagens fugazes do momento ou captura fotograficamente os instantâneos da percepção. Algumas páginas depois, num poema intitulado “Nova Ásia de Joam de Barros”, leremos: «a procura de pequenas pistas / para construir um poema de factos / e extraordinários quotidianos» (p. 44). Poesia de factos, pois então, ainda que construídos sob a subjectividade daquele que vive a sua própria história lançando-se na história dos outros. E fá-lo com uma ironia contagiante, alternando o registo epigramático com poemas de maior fôlego, o gozo lúdico da palavra com uma espécie de romantismo esclarecido, ou seja, com o erotismo de quem descobre «o prazer de caminhar sozinho à noite» (p. 36), o erotismo «dos que choram no cinema / e depois saem dissimulando / o rosto» (p. 51). A pontuação mínima e as quebras de verso inusitadas podem dificultar, por vezes, a leitura dos poemas, mas é sempre maior o gozo de lhes dar a nossa própria pontuação, de lhes descobrirmos a cadência e dançarmos com eles ao som de uma velha telefonia. Mais questionável é o recurso a versos que procuram claramente convencer-nos a partir de jogadas sintáxicas de belo efeito: «ela diz: estou mesmo infeliz desde aqui» (p. 60); «eu tinha vindo de onde / era o outro lado» (p. 64). Nada que negue à maioria dos poemas uma beleza surpreendente, por vezes de uma comoção tão simples quão simples possa ser a breve narrativa do amor perdido nas traduções deste “Casamento de Bangkok”: «disse-me // aprendi o essencial de tailandês / para não me perder na rua / saber o que vou comer nos restaurantes / dizer-lhe que a amo // mas não o suficiente para / lhe explicar o porquê // por isso / aponto com o olhar as árvores do pomar / são o nosso pequeno resguardo / de beleza // seguimos o perfume / ela sabe» (p. 67). Contra a Manhã Burra é a primeira colectânea de poemas de um poeta ainda novo. Nele ecoam as vozes dos mestres, sendo evidente a sombra de um Cesariny. Ecoam com a sabedoria de quem ousa distanciar-se o suficiente para, a partir das suas próprias experiências, escrever sem ter que pagar qualquer imposto. É uma edição de autor sobre a qual poderão obter mais informações aqui.

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