Acalmadas as hostes, as palavras desbravam com determinação o seu caminho. Poucos dão por elas, ainda que muitos fiquem atentos, assobiando para o lado, à erecção sanguinária das hostes. Vivemos em tempos assim. Perdido o espanto, subsumido nas certezas da ciência, procuram os olhos dos homens agora o sensacionalismo dos escândalos. Certo é que continuamos a ter sede de espanto. Por mim, prefiro o espanto da boa poesia. É esse espanto que aqui me traz mais uma vez. Ana Salomé estreou-se em livro há dois anos, com um singelo, mas prometedor, livro. Anáfora, era esse o título, juntava a poesia à arte de narrar. Os textos assumiram, na sua maioria, a forma da prosa. Relativamente a esse primeiro livro, ocorre nestas Odes mais recentes uma inflexão que não surpreende quem ande minimamente atento ao que de melhor se vai encontrando na densa floresta blogosférica. A autora do weblog O Cicio de Salomé reuniu agora em livro cinco conjuntos de poemas acidentalmente “qualificados” de odes. Num epílogo que deveria ser lido com a máxima atenção a quem interesse a matéria poética, a autora explica a opção: «nunca se poderia chamar odes aos textos deste livro mediante certas normas de versificação. Porém, não considero que só por isso, por não se seguir um procedimento formal, não se esteja perante um poema de determinado tipo». Prescindir do formalismo tradicionalista nada traz de novo, mas fica sempre bem sublinhar as pistas lançadas por quem apenas ousa improvisar depois de ter aprendido a ler a pauta. Geralmente sucede o inverso, com resultados confrangedores e medíocres. Não é o caso. Esta declaração de liberdade vem na senda de uma vontade de experimentar à qual não é alheio todo um saber literário, todo um conhecimento que alicerça a capacidade de gerar novas formas de cantar, renovadas danças, ao ritmo de uma respiração apenas coincidente com a vontade de quem escreve. Neste caso específico, poderíamos dizer antes com a vontade de quem ama, já que entre o escrever e o amar encontramos uma forte coincidência nos textos de Ana Salomé. Este amor à escrita não prescinde um amor à leitura. Talvez por isso sejam tantas as epígrafes, as evocações, as paráfrases, as intertextualidades. Mas para lá das vozes evocadas há a singularidade de uma voz. Uma voz realizada na escrita, acontecida nesse gesto de cartografar sob a forma de poemas as emoções, os sentires, decorrentes de se estar vivo. Pelas cinco partes que compõem as Odes – Na Estante (10 poemas), Na Escrivaninha (11 poemas), No Parapeito (15 poemas), No Gira-Discos (30 poemas), No Envelope com Cerejas (8 poemas) – foram meticulosamente distribuídos poemas cuja unidade se nota para lá da diversidade formal e temática. Essa unidade manifesta-se, antes de mais, numa atenção extrema a pormenores que tingem os poemas, descomplexadamente metafóricos, de elementos descritivos com efeitos de tipo cinematográfico. É frequente, por exemplo, a chamada de atenção para elementos quotidianos que, de alguma forma, configuram um estilo de viver, um tom de se estar no mundo: «cheirinho a colónia de bebé» (p. 13), «tarte de morangos» (p. 14), «o JL no braço» (p. 20), «uma pulseira branca de plástico» (p. 53), «casacão vermelho» (p. 68), «vestido de veludo vermelho» (p. 72), «o urso em cima do guarda-roupa» (p. 82), «casacos de lã» (p. 104), «par de calças amarelas» (p. 105), etc. Esta atenção aos pormenores, aos gestos como o dos primeiros versos da Ode Pavese - «prendo o cabelo com dois lápis de carvão / ponho-me atenta ao ofício de viver» (p. 24) – não procuram distrair a poesia do mundo, remetendo-a para as pequenas coisas belas dos dias, mas tentam elevar as pequenas coisas belas aos grandes lugares do mundo. Até porque não há nenhuma distracção nestes poemas, poemas que logram oscilar entre uma espantosa ironia - «não há quem me parta o coração / é péssimo para a qualidade literária» (p. 31) – e uma «cruel melancolia» (p. 56) que tanto declara a «falência do amor» (p. 22) e «os escombros dos sorrisos» (p. 23) como anuncia um futuro de sonhos numa capital de amor, rompido pela velocidade alucinante da paixão. Vislumbramos ainda, nesta teia complexa de sentimentos, desabafos sobre a condição feminina - «não sou homem e a uma mulher é mais difícil / viver só com as palavras» (p. 20), «consta ainda que toda a poeta deveria saber dar o nó / em gravatas de poetas, e costurar buracos de meias / e até mesmo fazer os poemas por eles / em caso de emergência» (p. 31) -, modos de declarar que entre a condição de género e as possibilidades da existência um muro se ergue e determina a ansiada e ansiosa liberdade dos sonhos. As Odes de Ana Salomé são arrumos, são a arca de um passado pessoal, íntimo, que aqui e assim se resolve, e as sementes de um futuro anunciado na esperança, na vontade de continuar a sonhar. Mesmo quando confessam um cansaço definitivo, elas deixam a porta por fechar para que o quarto escuro se inunde das palavras que povoam os sonhos. O lirismo desta escrita intimista não está fechado sobre si próprio, não é o lirismo ensimesmado de outras escritas. Sabe rir. É bom de se gostar.
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