sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

HUNGER


Do ano que foi ficaram mais que dois, entre os quais também esses tão simplesmente citados. Mas do ano que foi, já no ano que é, ficará igualmente a Fome de Steve McQueen (por falar nele). Antes de apertar a mão ao moribundo Bobby Sands, ou ao fantasma que dele ficará em correria nos matagais húmidos da Irlanda, confesso-me um homem sentado num quarto de Hotel. Mais uma vez sentado num quarto de Hotel, com os ouvidos desarrumados pelo barulho dos aviões que se levantam da terra e à terra regressam, rasando ilusoriamente o cocuruto dos prédios como ilusoriamente o céu rasa a copa das árvores. Não foi assim há tanto tempo que a sujidade e a nudez serviram de protesto. A gente é que já não se lembra, atarefados que andamos na educação dos filhos para as greves ligeiras da pátria - ligeiras deverão ser as refeições de quem sofre prisão de ventre. Vivemos as greves como quem vive uma festa, raramente vamos à porrada, mais raramente ainda o sangue nos sobe aos dentes, porque só nos resta tempo para reflectirmos o passado e no passado tentarmos encontrar justificações para o futuro que a toda a hora se avizinha mas nunca se concretiza. Ora, futuros assim só são concretizáveis nos olhos idealistas de homens como Bobby Sands (o retratado do filme que a história há-de guardar como terrorista, porque terroristas são todos os que agem para lá dos convencionalismos das negociações e deles será o reino... das profanações). O negócio destes terroristas é outro, tão semelhante ao dos serviçais do regime que não aguentam o choro perante os cenários abjectos da porrada, nem o vómito perante o nojo da porcaria. Por isso assistimos aos tremores nervosos dos polícias, homens a quem foi dada a ordem de manterem a ordem, homens que um dia, por acaso, por necessidade, por devoção, fizeram da cabeça o prémio que evita que outras cabeças, as do poder, se ganhem com mais facilidade. Na prisão, tanto eles como os outros, os encarcerados, estão presos. Estão presos, nesta situação tão específica, de uma resistência para lá do bem e do mal, de uma resistência para lá do organon que há muito determina os padrões da moralidade com que vamos desenhando os dias. Terrorista? Fanático? Inflexível? Bobby Sands estava convicto de uma razão com raízes em histórias antigas, por isso entregou o corpo à luta, por isso se entregou à morte fazendo uso da derradeira forma de luta que é a greve de fome. Não basta referir o papel de uma vida que é a interpretação de Michael Fassbender, um jovem nascido em 1977 que, ajudado pelo enorme sentido artístico de Steve McQueen – lembro-me bem de lhe ter sentido os olhos há coisa de cinco anos na Fundação Serralves -, oferece a quem consiga, queira e possa, um registo tão comovente quão chocante de um corpo/alma em desintegração. Hunger abre a janela do quarto de Hotel onde um homem sentado se distrai com motores potentes de aviões em transe, abre essa janela, digo, para uma paisagem temente. Logo ali à frente, a atravessar a rua, formas de luta apenas possíveis quando aquilo em que se acredita transcende os sentidos marcados pelos sinais de trânsito; um pouco mais adiante, do outro lado da rua, as contradições, os paradoxos, as dúvidas sem resposta que uma entrega assim provoca; lá ao fundo, no horizonte atravessado pelos edifícios teóricos, uma profunda melancolia, a morte fazendo-se vizinha dos sonhos, dos ideais, da procura extrema de uma liberdade oprimida. Um dia um padre chegar-se-nos-á para a última confissão. Dele nos despediremos enrolando as páginas da Bíblia. Fumando-as em conjunto, talvez mereçamos o abençoado carimbo do paraíso. Ou talvez já nada disso faça sentido quando outro Inferno não pode haver senão a vida que levamos. Então citaremos ao padre, não a Bíblia, mas uma nota de rodapé num ensaio de Giorgio Agamben: «John C. Colt assassinou Samuel Adams, em Nova Iorque, 1842. Condenado à morte, no dia da execução casou com Caroline Henshaw, de quem tinha um filho. Ficaram um momento sós após a cerimónia; Colt solicitou de seguida que o deixassem só antes de ser executado. Pouco antes da hora marcada foi encontrado apunhalado na sua cela». A moral é simples. Andamos todos presos à ilusão de que escolhemos como viver. Mas apenas alguns sabem escolher como morrer. Só esses são verdadeiramente livres. Mesmo quando estão presos.

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