Calcorreando campos, montanhas, vales, atravessando rios, florestas densas, reinos, Kung-Fu-Tze foi entre os senhores feudais uma espécie de Santo António a pregar aos peixinhos. Um dia sentou-se numa pedra, olhou o rastro do seu manto na Terra e apercebeu-se da pobreza com que teve de fazer-se a si próprio. E fez-se. Dizem que foi um mestre sem mestres. Nascido em 551 a.C, marcou um tempo asiático que passou a dizer-se antes de Confúcio e depois de Confúcio (digo eu). Mas foi preciso retirar-se do mundo aziago e passar palavra aos discípulos, no silêncio de um regresso ao local que o vira nascer. O Tao - ou a Via - que deixou de herança não é o mais simpático, mas conseguimos reconhecer-lhe facilmente um vasto conjunto de virtudes. Ele é o princípio de uma filosofia política que importa recordar, ainda num tempo em que política e moral não eram discutíveis separadamente (embora na prática fossem já duas matérias distintas). Guardo destes ensinamentos a importância dos rituais, deles provém uma harmonia indispensável à boa vida (ou à vida boa, como preferirem). Os conselhos do Mestre são quase sempre de mestre, irritam-se com a obediência cega e acrítica, exigem dos outros um questionamento permanente, atento e estimulador da acção - «fazer perguntas é, em si mesmo, o rito correcto». Porque pensar é já agir, embora muitas vezes a acção careça de pensamento, o Caminho é o de uma acção onde os frutos do pensamento se mostrem espontaneamente. Ao contrário do que possa parecer, não há nesta devoção aos ritos nenhuma espécie de conservadorismo. O rito correcto é interrogação, não pressupõe nenhum tipo de subordinação. Até porque o que importa é estar atento aos feitos, às acções. Muito mais do que às palavras. Também aqui se opera uma distinção entre o que é moral e o que é lucrativo. Para o sábio, só a acção moral será lucrativa. Para o “homem pequeno” o lucro é indiferente à moralidade da acção. Daí que o Mestre tenha dito: «Gostar muito de alguma coisa é melhor do que meramente conhecê-la e encontrar alegria nela é melhor do que meramente gostar muito dela.» Mais do que conhecer, importa encontrar alegria nas coisas. Nada mais pode ser a sabedoria senão este vislumbre de alegria numa acção. Os tolos verão no elogio da alegria um embevecimento exótico, não compreendendo que ele é antes uma eloquente afirmação da vida. Note-se como responde o Mestre ao discípulo melancólico que pretende compreender a morte: «Tu nem sequer compreendes a vida. Como podes compreender a morte?» É esta afirmação da vida que pretendo sublinhar. N’Os Analectos, pequena grande obra onde o defeito do Meio Termo aparece já enunciado – lá iremos -, a afirmação da vida baseia-se numa virtude que destaca frequentemente as alegrias da música. Porque a música, tal como os ritos, ensina uma disciplina que é muito semelhante à mais básica disciplina do corpo. Aprender a respirar, aprender a caminhar, não é outra coisa senão aprender a viver. O mesmo que aprender a dar ao corpo o peso certo da harmonia. Dançar é isto: receber a música do silêncio.
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