Giorgio Agamben (n. 1942) é um filósofo italiano com especial interesse nas relações entre a literatura e a filosofia. No ensaio intitulado Bartleby, Escrita da Potência procura interpretar a mítica personagem do conto de Herman Melville à luz do antigo problema filosófico “da mudança e da multiplicidade dos seres”. Aristóteles, o filósofo grego a quem devemos a organização das primícias que desde há muito nos regem o pensamento, terá sido quem melhor compreendeu a aporia da multiplicidade, resolvendo o problema procurando estabelecer uma dicotomia lógica que esteve em vigor durante muitos anos no pensamento ocidental. Refiro-me à distinção entre Potência e Acto. A Potência, anterior ao Acto, é o momento da indeterminação dos seres; aquilo que os determina é o Acto, pois Potência significa, ao mesmo tempo, poder ser e poder não ser. Assim, «segundo Aristóteles, cada potência é também potência de não» (p. 23). Este paradoxo do pensamento esteve na origem de inúmeras discussões metafísicas, nomeadamente sobre a natureza de Deus, que não cabem agora aqui. Relativamente a Bartleby, o problema coloca-se da seguinte forma: «ser capaz, numa pura potência, de suportar o «não mais [que]» (non piuttosto), para lá do ser e do nada, demorar-se até ao fim na impotente possibilidade que excede ambos» (p. 32). A tese é interessante, mas não esgota todo o (não-)sentido da personagem melvilliana. Bartleby, anaforicamente reduzido a uma preferência de não fazer, sugere muito mais do que uma questão ontológica radical. O que nele há de fascinante, mais ainda que a sua constituição alegórica, é a forma como os outros reagem à potência de nada que a sua decisão de não agir – uma espécie de inacção activa – manifesta. Ele é um não ser, uma biografia sem biografia, uma vontade sem vontade, um acidente, talvez, sem nada de acidental, que provoca nos outros a consciência de uma natureza adormecida. Ele não é a greve de fome, é a fome que se esconde por detrás da greve. Ele é uma humanidade parada na sua infernal correria. Tal como em Moby Dick podíamos entrever uma representação primitiva da humanidade, em Bartleby, O Escrivão observamos uma representação crítica dessa mesma humanidade já na sua idade moderna. Daí que o conto termine: «Ah, Bartleby! Ah, humanidade!» (p. 114) O desconcertante poder deste escrivão é o poder de não ser, algo cuja compreensão não está ao alcance dos homens vulgares que o rodeiam, sejam eles os colegas escrivães Turkey, Nippers e Ginger Nut, onde toda a excentricidade é abreviada a uma lógica comportamental previsível, seja o homem de leis – a expressão é sintomática – que nos narra a história. Não há-de ser por acaso que o ambiente escolhido para a existência desta tão excêntrica criatura seja o ambiente entediante, extremamente organizado e mecanizado de um cartório. Agamben lembra-nos algo deveras curioso: «Benjamin percebeu a íntima correspondência entre a cópia e eterno retorno, quando compara certa vez este último à Strafe des Nachsitzens, isto é, à punição que o professor aplica aos alunos negligentes e que consiste em copiar inúmeras vezes o mesmo texto» (p. 44). O pálido e singular escrivão que é admitido no cartório para logo preferir de não fazer o que lhe mandam, nomeadamente copiar, proporciona um acontecimento insólito causador de perturbações insustentáveis. Não só instaura uma fractura na lógica de betão que rege o funcionamento daquele microcosmo, como ainda entra em ruptura com um nexo histórico sustentador dos homens no tempo e no espaço. No fundo, ele representa a irracionalidade que desafia a lei, é a força do inconsciente, existisse consciente, a vir à tona da consciência num gesto inadmissível, isto é, o não-gesto. Bartleby faz pensar quem abdicou de pensar, faz sentir quem se esqueceu de sentir, lembra à humanidade as contradições de que é feita. Mas é necessário pensá-lo para lá da teia caótica que liga a lógica ao pensamento e o pensamento à linguagem, é preciso pensar esta personagem com o risco louco dos trapezistas sem rede. O preferir de não que sai de dentro da personagem como uma anáfora reveladora dos itinerários humanos que nos trouxeram ao ponto em que estamos, encalha no porto de uma liberdade existencial que a fenomenologia sintetizou na expressão estar em relação com. Se todo o homem for, de facto, um estar em relação com, então a expressão bartlebyana pode também ser entendida como uma recusa que esbarra no defeito de uma liberdade ainda por assumir. É que perante o outro, preferir de não lhe apertar a mão não impede que ele nos aperte a mão a nós. Recusando fazer parte de, Bartleby acaba sendo arrastado por. E ser arrastado por, convenhamos, não é nada recomendável.
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