quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

PRÉ-SOCRÁTICOS

O primeiro volume da Biblioteca Básica de Filosofia (Edições 70) é o ensaio de Jean Brun sobre os chamados filósofos pré-socráticos. Sobre estes, melhor seria ler Os Filósofos Pré-Socráticos, de Kirk, Raven e Schofiel, publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Mas como a preguiça para o pensamento é um vírus contagiante, fiquemo-nos pela síntese de Brun, o qual divide a matéria em sete capítulos: os jónios ou milésios, o pitagorismo, Heraclito, os eleatas, Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de Clazómenas e os atomistas. O destaque atribuído a três filósofos em particular justifica-se plenamente se tivermos em conta as repercussões do pensamento de cada um deles num futuro que à época estaria longe de ser previsível. Daí em diante foi sempre a morrer. Mas antes de mais impõe-se sublinhar algumas das vantagens proporcionadas pela leitura destes primeiros pensadores que a História consagrou: 1) são a filosofia no seu estado embrionário, ou seja, o único que realmente interessa; 2) das suas obras ficaram apenas registos fragmentários, algo que estimula a criatividade de quem os pense; 3) neles não encontramos nenhuma distinção entre as diversas dimensões do saber que foram posteriormente compartimentadas, sendo essa força de pensamento anterior à separação dos saberes muito mais actual do que a fixação num pensamento científico especificador e, por isso mesmo, lacunar; 4) nas palavras do poeta Robert Bringhurst: «ao contrário de Sócrates, discutiam consigo mesmos e não com os ouvintes. Ao contrário de Paltão, não se ocupavam a endireitar o mundo e a convencer. Ao contrário de Aristóteles, segundo conta Aristóteles, estavam mais interessados no elo entre inteligência e emoção do que em diferenciá-los»; 5) eram pensadores errantes, livres, que, por isso mesmo, não escapam hoje ao saudável gosto pela lenda que a toda a hora os recria. Poderia continuar a enumerar outras vantagens, não fosse o caso de ser muito mais higiénico evitar a exaustão. Nestas vantagens fica apenas patente uma simpatia inegável pelo primitivismo, aquele que nos levando à fonte, nos colocando perante os alicerces, pode ajudar a melhor entender a fachada do mundo em que nos foi acidentalmente oferecida a risível experiência de viver. Relembro duas heranças fundamentais de dois dos três pensadores acima destacados. Heraclito deixou-nos a noção de devir, celebrizada no fragmento que diz não se poder tomar banho duas vezes no mesmo rio. Esta noção de contínua transformação do mundo é tão importante que ainda hoje serve para opor às teorias idealistas da permanência e da imutabilidade do Ser, encalhadas em conceitos tão absurdos quanto os de ideia e essência, uma noção dinâmica da vida no interior de uma unidade vulcânica. É para essa unidade vulcânica que mergulhará Empédocles depois de ter andado a exorcizar mentes possuídas pelo demónio da ignorância. Chamam-lhe mago por ter reivindicado para si um conhecimento que era, antes de mais, uma forma de resistência ao sedentarismo castrador que ameaçava o pensamento. Viajou, regressou, exilou-se, vislumbrou no mundo uma imensa “tragédia cósmica” regida pela luta entre um par de forças que a toda a hora nos reclama a busca de um equilíbrio. A eternidade é uma perpétua transformação, é o que do passado há em mim e de mim haverá no futuro. É o que resulta de uma luta sem tréguas. «A luta do Amor e do Ódio, que constitui a própria vida do cosmos, reproduz-se no homem, microcosmos que vive em estreita relação com o que o rodeia», diz Jean Brun. E dentro de mim, a toda a hora, ódio e amor reivindicam a paz e a liberdade de um só gesto: o amoródio. Pena que chamem pré-socráticos a estes tipos. Na história das ideias deviam ser proibidos todos os prefixos. Seria muito mais seguro e justo se chamassem a todo o pensamento posterior a estes homens qualquer coisa do género pós-pré-socrático. Sócrates representa apenas uma ilusão, é já a sombra da luz que foram Heraclito, Empédocles, entre outros. Eles representam o pensamento esclarecido, um pensamento que resulta da razão dos instintos, da razão das impressões, das sensações, tudo o que nos resta. Não há um pensamento pré-socrático, há um pensamento pré-ilusionista.

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