O facto do realizador polaco Jerzy Skolimowski não filmar há 15 anos pode ser muito aliciante para algumas pessoas. Muitas delas não terão sequer ouvido falar do artista, nunca lhe terão visto nenhum filme, mas alguém que resolve regressar 15 anos depois só pode ter algo muito importante a dizer. E di-lo. A gente escuta-o atentamente para não nos perdermos na gaguez do discurso. Di-lo com silêncios ensurdecedores, tempos misturados e gestos sobrepostos, di-lo com uma extrema simplicidade, di-lo com os olhos para que a gente aprenda a olhar. Afinal, não é isto que mais importa no cinema? Pouco importam os diálogos quando cada plano fala por si. Eles são o que a câmara concentra num homem e no mundo à sua volta. Só esse homem interessa, como O Estrangeiro de Camus e a sua inteligente incapacidade para o mundo das pessoas ditas normais. Que pode significar ser como os outros num mundo impiedoso? Quem quer ser como os outros num mundo onde os outros mal se distinguem de um estranho e ameaçador ruído? É verdade que este homem não deseja a morte de ninguém. Ele trabalha com a morte, deita fogo aos restos dos corpos que vão ficando aos bocados pelo mundo. O desejo dele é outro. É o desejo de amar. E ama, mesmo para lá da condenação que é o amor. Ama, amará, separado por uma rua enlameada, coberta de neve, separado pelos vidros das janelas, pelas paredes dos edifícios que separam quem se ama, separado e distante, ama à distância quem não sabe ser assim amado, ama às escondidas, ama para lá de qualquer inquisição, incondicionalmente, no silêncio do sono de quem ama, ama com a timidez de quem não suportaria, talvez, não ser amado. E por isso cala o amor, esconde-o do outro, reserva-o para si até ao momento de outro se revelar, lá está, pouco mais que um estranho e ameaçador ruído. Atrai-me em Léon a ingenuidade que já conhecia em Mario Ruoppolo, o carteiro de Pablo Neruda; atrai-me a compaixão silenciosa que vi recentemente num escuta da Stasi, em As Vidas dos Outros; atrai-me a gaguez, os gestos atabalhoados, os dedos encardidos que seguram um anel de diamantes para oferecer a uma amada que não suspeita sequer ter um amante. Dos outros só podemos esperar que construam muros, que se sintam ameaçados por quem olha assim, pois o tempo ensinou-nos a desacreditar estes modos de olhar, de observar, o tempo fez crescer entre nós e os outros muros intransponíveis porque nós e os outros deixámos de acreditar na contemplação. Todo o olhar é hoje um modo de devorar, de comer, todo o olhar é uma ameaça. Dessas ameaças nos protegemos colocando cortinas nas janelas, erguendo muros em torno das casas, disfarçando a nudez do corpo com trapos sazonais, disfarçando a nudez da alma com escudos invisíveis, os escudos da moral que se encontra nos códigos, nos processos, nas constituições que ditam e julgam os modos de ver, de olhar, de contemplar. Espreitamos os outros através de blogs. Pouco mais. O que dirá a maioria de Léon? Um coitado, um pobre solitário, um retardado, variadinho da mona, uma triste vida. É um anónimo, um desgraçado anónimo. No fundo, o que todos somos por passarmos a vida a olhar receando sermos vistos. Eis um belo e actualíssimo tratado sobre o mundo das novas tecnologias, sobre o amor neste mundo que é o nosso reduzido à dimensão de uma aldeia onde a vida ainda parece ser iluminada por candeias e nas lojas vendem-se machados.
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