Regresso à tragédia, ao primeiro volume dos Clássicos Inquérito. Édipo Rei, de Sófocles, traduzido e prefaciado por Agostinho da Silva. Elogiam-se a harmonia e o equilíbrio, eleva-se Sófocles ao patamar de «génio grego». Com toda a certeza, o «génio grego» previu na tragédia o itinerário da catástrofe, a condição dos homens amarrados à foice do destino. Toda a gente sabe a triste história de Édipo. Freud apropriou-se dela para desenhar complexos de difícil decifração. Arrumo Freud na prateleira do inconsciente, mergulho na poesia da personagem grega. Chamam-me o destino e os enganos. Édipo não sabe quem é, crê nas revelações do oráculo com a cegueira dos crentes, supõe-se filho de quem é adoptado. O oráculo não oferece ao homem Édipo a sua história, o seu passado, fornece-lhe apenas as pistas impressionantes do futuro. O oráculo anuncia, prediz, escarra o destino, sugere. Ninguém está livre de se desencontrar sabendo o futuro, as pessoas encontram-se consigo próprias descobrindo o seu passado. Qual é a tua História? ― esta é a pergunta fundamental que qualquer homem deve fazer a si próprio, mais do que preocupar-se com o futuro. De novo ecoa Confúcio, por que querem os discípulos saber o que é a morte (futuro) se ainda nem perceberam o que é a vida (passado). O futuro é a anunciação ininterrupta do que o passado acondicionou, é uma afirmação que não carece de consultas. Só o passado merece a nossa preocupação. Sábio é o velho que perante a ausência de futuro faz o balanço do passado, sábio é aquele que se descobre a si próprio reflectindo-se, pensando-se pelo que foi e não pelo que será. O futuro é sempre uma promessa por cumprir, o passado é uma inscrição a pedir compreensão e testemunho. Édipo estava enganado acerca de si próprio, por isso dificilmente escaparia à predestinação: matou o pai, casou com a mãe. Toda a sua vida foi um engano fundamentado no desconhecimento de si próprio, das suas origens, da sua verdadeira natureza. Este “modelo de humanidade”, como lhe chama Agostinho da Silva, é um lamento primitivo. Faz-nos pensar “nos males que a vida traz” contíguos ao desconhecimento; a precipitação no futuro, quando para trás ficou todo um caminho que urge conhecer, compreender, governar. Nenhum futuro poderá ser governado com o desgoverno do passado, nenhum remédio para a catástrofe anunciada, impõe-se uma busca ao encontro dos factos, nenhuma indiferença nos ajudará a enfrentar os tempos vindouros. O futuro será sempre uma casa em chamas. «Eu esclarecerei a origem de tudo», afirma Édipo, aquele cuja própria origem nunca foi esclarecida por si próprio. Ironia das ironias, veja-se no que deu a ambição de Édipo, aquele que viveu mais preocupado em pôr a ciência ao serviço dos outros do que de si próprio. Conhece-te a ti mesmo, Édipo, «as almas como a tua castigam-se a si próprias». Fala Jocasta: «Que pode temer o homem quando o destino tudo governa e toda a previsão é incerta? O melhor que há a fazer é viver ao acaso.» Tivesses escutado as sábias palavras de quem te gerou, não terias acabado com os olhos perfurados por alfinetes de oiro. Ver não é crer, é compreender; ver não é predizer o futuro, é salvar o passado da incompreensão. A encruzilhada da vida, a tragédia, é tão raramente nos lembrarmos disso.
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