terça-feira, 3 de março de 2009

DISPERSÃO

E agora? Todos entretidos a discutir anos 90, heranças e herdeiros; todos muito azafamados na discussão dos futuros, como se houvesse futuro, ainda mais para a poesia; todos muito novíssimos, de rosto eximiamente rapado, já sem passado e só com futuro, tanto futuro que até estonteia. E agora? A mão em espiral interroga-se, vai à procura de exemplos, consegue, aqui e acolá, vislumbrar algo parecido, mas nada que se pareça. António Osório (n. 1933) estreou-se com A Raiz Afectuosa (edição do autor) quase aos 40, Manuel Gusmão (n. 1945), nesciamente arrumado na prateleira dos putativos anos 90, tinha 45 anos quando publicou o primeiro poemário: Dois Sois, A Rosa. A Arquitectura do Mundo. Nuno Dempster (n. 1944) não fez a coisa por menos, e chega para confundir quem gosta de tudo muito arrumadinho. Estreia-se em livro aos 65 anos, ou quase, estreia-se em idade de reforma com a jovialidade de quem vem para reformar velhos preconceitos, estafados estereótipos, estúpidas ideias feitas. Quando assim é, costumam os críticos falar de poetas tardios. Mas tardios são os mortos. E eu tenho lido pouca poesia tão viva quanto esta. Antes de mais, deixemos ao poeta a palavra sobre a arrumação do extenso volume: «a disposição dos poemas não é cronológica (…), preferi organizar a compilação, dividindo-a segundo grandes assuntos» (p. 284). Sublinhemos organizar e compilação. Este é um livro com muitos livros dentro: Caminhos Sobrepostos, Confluências, Osmose, Génese, Em Cinza Quente, Palimpsesto, Inventário. Sete livros. Tantos quantos os dias que Deus demorou a criar o céu e a terra, embora o sétimo tenha sido consagrado ao descanso. Sendo assim, cabe informar que ao primeiro dia o poeta criou um lugar em trânsito, repleto de estradas, caminhos, sítios perfeitamente identificáveis, algures entre a Península Ibérica e os berços de uma Europa em decadência: Grécia e Roma. Fica-nos, desde logo, a marca de uma poesia segura, firme como a voz que a declama, esclarecida, mais que não seja, pelas dúvidas que atormentam o tédio e subitamente o interrompem com pequenos e inesperados momentos a darem azo ao poema. Entre o exílio e o fascínio, importa manter o espanto, deixar que o cansaço pese sobre si próprio enquanto se convocam o canto de uma cotovia ou o voo de uma libelinha ou um mar bonançoso que, não fazendo esquecer os desgostos da vida, permitem ir vivendo um pouco acima da miséria. Ao segundo dia, o amor e suas lembranças. Mesmo nestes poemas o lirismo não resvala numa indecente lamechice, como tantas vezes sucede. Aqui o amor não é um paraíso, nem achado nem perdido, é antes a consciência da inexistência de paraísos ou, se quiserem, a constatação de que paraíso só mesmo o da procura incessante das musas na memória. Que o poeta não me leve a mal partir-lhe o poema: «as musas / andam hoje por bares e cafés», «as musas, alta madrugada, / enchem as discotecas», «as musas eram só ficção», «ficção por ficção mais vale / apelar à memória» (p. 72). Não admira que os poetas mais citados sejam Camões e Jorge de Sena. Entre ambos houve a grandeza de um olhar atento ao mundo, magoado e refeito nessa mágoa que é assistir, talvez porque apenas atento, à desatenção dos outros, e nessa desatenção vislumbrar sinais de decadência. O tom quase elegíaco que timbra os poemas do terceiro dia, o dia da Osmose, relevam a solidão e o exílio em tempos apunhalados pela ausência de espanto. A cidade, assim dita de modo abstracto, é o cenário devastador da degradação, d’«o peso digital da noite urbana» (p. 127), «deste tempo violado / por números, ecrãs e deuses mortos» (p. 133). Restam os poemas, urdindo o manto que nos protege do frio deixado pelo desfile do tédio nos dias. Génese é um longo poema em verso largo, nele se misturam memória, um forte sentido crítico da História, a sabedoria de quem ousa olhar a existência sem subterfúgios: «Sobre ossadas dormimos, sobre ossadas amamos, / sobre ossadas fazemos a guerra eterna e a paz, / e os tanques a galope cavalgam no horizonte, / longe cavalgam sobre as ossadas antigas / e devastam os vivos em combates mortais / travados noutras eras. Onde estão esses corpos?» (p. 197) No lugar onde os tempos se confundem, no poema, essa flor que prevalece para lá da devastação desde o início do mundo, porque é dele toda a lógica, mesmo a que não tem lógica alguma. Ao quinto dia o fim aproxima-se, a morte afirma-se entre tudo o que é dos dias: o telemóvel, as prestações ao banco, os shoppings, as câmaras de vigilância, os algarismos sem nome, um chip essencial, o que resta de deuses antigos sendo vencido por uma agonia insuportável. Palimpsesto não deixa o trabalho pela metade, ainda que ironicamente ouse prever o futuro com a mão pesada e lúcida da constatação: «Onde nos encontrámos, Atxaga! / nesta Lisboa limpa / das escórias do império, / toda europeia, toda ela na rota / das coisas matemáticas, / em direcção do que é / julgado para sempre vivo, / na cave pós-moderna do Picoas, / de linhas claras rectas / sem pensamento, / onde o teu livro em saldo / se vende por dois euros, o futuro» (p. 232). A poesia também se faz tema, mas tudo se faz tema em cada poema deste livro. É essa a sua superior qualidade. O Inventário final apenas o confirma, rememorando vivências antigas, enumerando a experiência que resistiu ao esquecimento, não esquecendo o próprio esquecimento e a sua tirânica manipulação da realidade. Numa palavra: exílio. Do mesmo género, talvez, daquele onde Mário de Sá-Carneiro foi buscar a matéria do seu volume homónimo. Exilado de tudo em mim mesmo, resta-me afirmar: felizes aqueles que encontram quem assim os ampare na ânsia de viver.

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