Herman Melville também está quase a fazer anos. Nasceu a 1 de Agosto de 1819. Olhamos para a sua figura com um espanto primitivo, vimos naquelas longas barbas a sabedoria dos grandes mestres, uma sabedoria arrancada a ferros da enciclopédia da experiência vivida. A vida que vivemos, não é preciso muitos anos para sabê-lo, compõe-se de necessidade, vontade e acidentes. Entre todas as dimensões, há ainda a acomodação do desejo, o deixar-se ir vivendo, o permitir-se ser vivido pelos outros, mesmo quando entre nós e os outros existem fortíssimos elos identitários. Seja como for, Melville não teria sido quem foi se o pai não lhe tivesse morrido tão cedo, vendo-se o filho varão impelido ao trabalho com apenas 14 anos. Um acidente gerou uma necessidade, a necessidade motivou uma série de decisões que acabaram por determinar aquilo que nos leva agora a recordá-lo: romances como Typee (1846) e Moby-Dick (1851). A vida de marinheiro, primeiro num navio de marinha mercante, depois em baleeiros e numa fragata, fornecerá o material para essas obras, experiências vividas radicalmente das quais não mais se libertará a escrita. O primeiro romance narra os tempos de cativeiro numa tribo de canibais, depois de ter desertado para uma das ilhas do Pacífico. Estávamos em 1841. O resgate, cem dias depois, foi seguido de um motim capitaneado pelo poeta. O regresso a Nova Iorque acontece em 1845, um ano antes do aclamado romance de estreia. Sentiu o gozo do sucesso, acompanhado pelo amargo da censura de algumas passagens menos cúmplices da «acção evangelizadora dos missionários». Casa com Elizabeth Shaw. O casamento e o nascimento do primeiro filho, que viria a suicidar-se mais tarde, praticamente coincidem com o declínio. O espírito aventureiro deu lugar à deriva filosófica. Os leitores não estavam preparados. Conhece os primeiros insucessos editoriais, escreve algumas “porcarias” «apenas para comprar tabaco», publica Moby-Dick, «que passou quase inadvertido» (Jorge Luís Borges), publica Bartleby, uma obra-prima que antecipará a narrativa absurda. Viaja pela Europa e Médio Oriente, percorre os Estados Unidos da América proferindo conferências, começa a escrever poesia, publica os últimos escritos em edição de autor. Sobre a poesia, conta Mário Avelar num apontamento cronológico inserido na recente edição dos poemas de Melville pela Assírio & Alvim: Battle-Pieces and Aspects of the War, o primeiro livro de poemas de Melville, foi publicado numa edição de 1260 exemplares. Até 1868, dois anos após a publicação, vender-se-iam apenas 468 exemplares. Ora aí está algo que nos soa bastante familiar. Quando morreu, em 1891, Herman Melville era um estranho no meio literário norte-americano. Ressuscitou no século XX, com as mesmas barbas, as mesmas aventuras, a mesma vida. Necessidade, vontade e acidentes trazem-no hoje à mesa, sendo certo que se o seu pai não tivesse morrido quando ele ainda era tão novo, nada disto teria acontecido tal como aconteceu. Enfim, não há vidas perfeitas.
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