terça-feira, 4 de agosto de 2009

«UTOPIA REVOLUCIONÁRIA»


Sigo o excelente estudo de Hélène Fleury que serviu de prefácio à edição portuguesa de A Máscara da Anarquia: Shelley, Um Exilado Entre Nós, em tradução de Eduarda Dionísio. Faz hoje 217 anos, o poeta inglês a quem chamam romântico. Mas o que significa romantismo na vida de Percy Bysshe Shelley? Significa indignação, as entranhas revolvendo-se perante a submissão e a subordinação, significa essa vontade de subverter que começou bem cedo, na escola, ao recusar vergar-se às humilhações exercidas sobre os caloiros. A experiência de Oxford forneceu-lhe os primeiros motivos de insubordinação. Convidava os colegas para vinho e poesia a altas horas, desprezava todo o tipo de autoridade. Publica um panfleto com o título A Necessidade do ateísmo, valendo-lhe a imprudência uma exemplar expulsão de Oxford. Conta Fleury que esta expulsão marcou o início do exílio, «viveu toda a vida sob vigilância policial, perseguido pelos credores, importunado pelos proprietários». Casa com Harriet Westbrook, contra a vontade do pai da jovem cúmplice; desbrava o seu próprio caminho afastando para as margens toda a intelligentzia que cedia ao poder. Há espíritos assim, aos quais os conformados chamam rebeldes. Outros falam em compromisso, parecendo temer o uso de palavras tão em desuso num mundo de bananas moles: resistência, liberdade. Shelley fez literalmente da poesia uma arma contra a prepotência e a tirania, a melancolia e o desespero que ecoarão em alguns poemas mais aceitáveis à luz dos cativos da canonização resulta dessa solidão que se abate sobre todos os que ousam ser livres num mundo avesso à liberdade. Foi solidário com o ludismo, o mais radical dos movimentos sindicalistas que eclodiu nos primórdios da Inglaterra industrializada. Parte para a Irlanda munido de propaganda contra «magistrados, políticos, homens de negócios». Afixa poemas nas paredes, manda imprimir panfletos, é vítima do arrivismo dos reformistas. Engraçado verificar que desde sempre e ainda hoje ser-se reformista não passa de uma dissimulada forma de arrivismo, uma ilusão que se atira sobre a consciência dos desfavorecidos como um véu de esperança que logo desaparece assim sejam alcançadas as ambições dos promotores da reforma. «Desconfiai desses impostores de cara lisa que, é verdade, falam de liberdade, mas que, pelos seus embustes, vos conduzem à escravidão», aconselha Shelley. Parte para o campo. Com Harriet e alguns amigos, fabrica balões de seda que enche de «escritos rebeldes antes de os largar (…) no céu nocturno de Inglaterra». Eis uma bela forma de se fazer publicar, dando asas aos poemas que vagueando sobre a Terra hão-de por força de leis naturais cair algures aos pés de um leitor. Não durará muito mais a relação com Harriet. Percy B. conhece Mary Godwin, a qual se tornará a breve trecho Mary Shelley. Separa-se de Harriet e perde a custódia dos filhos, vindo mais tarde a sentir o gume do remorso quando recebe a notícia do suicídio de Harriet. Em 1816 conhece o poeta Lord Byron, outro exilado da hipocrisia social. «Se a reputação escandalosa de Byron deu mais que falar do que a de Shelley, foi menos no terreno das ideias do que pelo seu comportamento ostensivo, que ultraja os bem-pensantes. De facto, o verdadeiro sujeito de desordem, irredutível às convenções da época, não há dúvida que é Shelley, o ateu confesso, o amigo declarado do fraco nos conflitos sociais, enfim, aquele que reivindica ardentemente a libertação da mulher tanto como a do homem no amor livre» — conclui Hélène Fleury. Shelley prosseguirá o seu caminho revolucionário na companhia de Mary, perseguido constantemente por um poder que relegava o poeta para uma vida de escândalos sucessivos. Os poemas de combate e as sátiras políticas da sua lavra abriam feridas que só o ostracismo podia sanar. Em 1822, aquele que sempre viveu tempestuosamente foi literalmente colhido por uma violenta tempestade. Não conseguiram os homens o que a Natureza cumpriu: o corpo de Shelley deu à costa depois do veleiro onde tinha embarcado ter naufragado no golfo de La Spezia. Morreu aos 29 anos, com a mesma idade de uma imensa maioria que anda hoje entretida a alimentar-se do biberão conformista das famílias bem instaladas.

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