Nem de propósito. Encontrei Blaise Cendrars sentado numa tradução de Herberto Helder, o mágico das palavras que recusa bustos de pedra. «Ei-los ao homem e à mulher / Ambos feios ambos nus». Os versos transportaram-me para a Bíblia Sagrada. Ao Génesis, «tanto o homem como a mulher andavam nus, sem sentirem vergonha por isso». Depois deram ouvidos à serpente, comeram o fruto da árvore que estava no meio do jardim, abriram os olhos e taparam as partes baixas. Fizeram-se à Vida. Desde então, andamos à procura do Éden. Sempre que nos aproximamos, somos colhidos por uma espada de fogo que nos incendeia e desfaz em cinzas. Nasceu a 1 de Setembro de 1887, esse que ficaria desconhecido da maioria, mas conhecedor do mundo, pelo pseudónimo de Blaise Cendrars. Filho de homem de negócios suíço, errou de nação em nação arrastado pelos braços familiares. Fecharam-no de castigo num quarto após lhe terem diagnosticado malfeitorias na escola de Neuchâtel. A criança nada queria com as escolas e não nascera para menino do papá. Gamou-lhe os cigarros e escapuliu-se para a Rússia, onde foi sobrevivendo miseravelmente do fabrico de relógios. Miseravelmente livre, acrescente-se. Fique também claro que tocou vários instrumentos: homem de negócios, jornalista, crítico, agricultor, ia tudo dar ao mesmo. Eram modos de ganhar a vida, de conquistá-la. Apaixona-se por Hélène, «que morre tragicamente queimada». Casa com a polaca Féla Poznanska em 1914. Viaja incansavelmente pelo mundo, calcorreia os lugares mais exóticos, experimenta, parte, regressa, volta a partir. De novo em Paris, é preso ao tentar roubar um livro de Apollinaire numa livraria. Não sabemos se o facto terá contribuído para que travassem conhecimento, o que aconteceu em Novembro de 1912 após a publicação de Les Pâques à New York (escrito de um jorro após a audição de A Criação, de Haydn, na igreja de Saint Bartholomew, em Nova Iorque, onde o poeta se recolhia do desespero e da fadiga): «Enormes barcos negros chegam dos horizontes / E desembarcam-nos, a esmo, nos pontões. // Há italianos, gregos, espanhóis, / Russos, búlgaros, persas, mongóis. // São animais de circo que saltam os meridianos. / Atiram-lhes com um pedaço de carne como a cães. // Essa sórdida ração é para eles uma felicidade. / Senhor, tende piedade dos povos que sofrem» (Poesia em Viagem, trad. Liberto Cruz, Assírio & Alvim, Março de 2005). Prose du transsibérien et de la petite Jehanne de France aparece em 1913, publicado em folhas de 2 metros de altura, numa tiragem de 150 exemplares, com pinturas abstractas de Sonia Delaunay. Uma Torre Eiffel de poesia acabara de ser dada à estampa. «Porém, eu era muito mau poeta. / Não sabia ir ao fundo das coisas. / Tinha fome» (idem). E prosseguiu caminho, o andarilho. Na sequência de ferimentos durante uma participação na Primeira Grande Guerra, perde o braço direito e, sem ele, começa a perder Féla Poznanska, de quem teve três filhos: Odilon, Remy e Miriam. Casará posteriormente com a actriz Raymone Duchateau. Mas antes ainda, viagens pela Inglaterra, Brasil, África, Portugal, Espanha, serão apenas interrompidas para largar manuscritos nos editores. Conhece meio mundo literário e aventura-se pelo cinema e pela rádio. Deixa de publicar poesia em meados da década de 1920. Encontramo-lo a habitar um castelo, a percorrer 100 000 km num Alfa-Romeo conduzido com uma só mão (Braque desenhou-lhe a carroçaria), a escrever prosas inspiradas por uma vida verdadeiramente alucinante. Os anos posteriores serão da prosa, do cinema, das memórias. O filho Remy morreu-lhe durante a Segunda Grande Guerra. Malraux, então Ministre des Affaires Culturelles, condecora Blaise Cendrars, em 1958. De coração enfraquecido por sucessivos ataques, o nómada morre a 20 de Janeiro de 1961 - mais cheio de vida que a maioria dos vivos:
Et il y avait encore quelque chose
La tristesse
Et le mal du pays.
Et il y avait encore quelque chose
La tristesse
Et le mal du pays.
1 comentário:
Eh pá! e o Moravagine, traduzido pelo Ruy Belo?
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