O Robert Carlyle é muito parecido com o Fernando. Que será feito do Fernando? A Emily Watson é muito parecida com a beleza. Que será feito da beleza? Angela’s Ashes diz-nos que ela está na América. Naquele tempo, América significava esperança. Talvez nos queiram dizer que a beleza está na esperança. Pois eu estou convencido de que a esperança é maquilhagem para a dor, a esperança é o Photoshop da alma, por detrás da esperança é que reside a beleza, ou seja, naquilo que mais aproxime um rosto da pureza, no sentido de naturalidade. O rosto das crianças é belo porque é natural, porque é puro. O rosto da Emily é o que mais se aproxima numa mulher do rosto de uma criança. Os pessimistas dir-me-ão que a pureza não existe, mas eu já estive com alguns recém-nascidos nas mãos. Tão puros quanto o pecado que os concebeu. O resto é chuva, imundície, ruas pestilentas, a discriminação e a austeridade de um catolicismo hipócrita, pobreza, bolor, humidade, o resto é sobrevivência, o ser humano na sua inevitável metamorfose da corrupção. Das cinzas de Angela, guardarei alguns momentos: os arquivos da agiota lançados à água, a pobreza que se alimenta da pobreza já sem fôlego, levada na corrente, um gesto puro de liberdade e de compaixão que está na fronteira entre o interesse pessoal e o amor aos outros – o que, diga-se, é ideal longe de parecer concretizável; guardarei igualmente a tuberculosa a respigar amor ao tempo que lhe resta, abraçando-se ao carteiro enquanto confessava, depois do amor, que o que mais queria era um homem bonito que a abraçasse. Muita chuva, a condizer com a tristeza da privação. Privação material e amorosa. E tudo é possível: as duas formas de privação podem conviver e podem contrapor-se. As pessoas que alguma vez passaram mal sabem bem o quão importante se torna cada momento, cada segundo, e sabem que alguns milagres podem verificar-se entre um e outro segundos. O milagre é a beleza surdir do nada entre a porcaria, é da pestilência alguma coisa, que não sabemos o quê, exalar um perfume inebriante. Um abraço, talvez. Uma refeição. O aconchego. Alguém chegar a casa, ser chamado de inútil ao mesmo tempo que é desejado, alguém poder sentir o conforto do desejo, um abraço, uma refeição. O retrato do Papa amigo dos trabalhadores pode consolar os desempregados, não matará a fome de um emprego, não restituirá as vidas perdidas, porque é mera maquilhagem, não é puro nem belo como eram as crianças levadas por Deus. Não é puro nem belo como a refeição que nos consola da fome.
terça-feira, 6 de outubro de 2009
UM PAPA AMIGO DOS TRABALHADORES
O Robert Carlyle é muito parecido com o Fernando. Que será feito do Fernando? A Emily Watson é muito parecida com a beleza. Que será feito da beleza? Angela’s Ashes diz-nos que ela está na América. Naquele tempo, América significava esperança. Talvez nos queiram dizer que a beleza está na esperança. Pois eu estou convencido de que a esperança é maquilhagem para a dor, a esperança é o Photoshop da alma, por detrás da esperança é que reside a beleza, ou seja, naquilo que mais aproxime um rosto da pureza, no sentido de naturalidade. O rosto das crianças é belo porque é natural, porque é puro. O rosto da Emily é o que mais se aproxima numa mulher do rosto de uma criança. Os pessimistas dir-me-ão que a pureza não existe, mas eu já estive com alguns recém-nascidos nas mãos. Tão puros quanto o pecado que os concebeu. O resto é chuva, imundície, ruas pestilentas, a discriminação e a austeridade de um catolicismo hipócrita, pobreza, bolor, humidade, o resto é sobrevivência, o ser humano na sua inevitável metamorfose da corrupção. Das cinzas de Angela, guardarei alguns momentos: os arquivos da agiota lançados à água, a pobreza que se alimenta da pobreza já sem fôlego, levada na corrente, um gesto puro de liberdade e de compaixão que está na fronteira entre o interesse pessoal e o amor aos outros – o que, diga-se, é ideal longe de parecer concretizável; guardarei igualmente a tuberculosa a respigar amor ao tempo que lhe resta, abraçando-se ao carteiro enquanto confessava, depois do amor, que o que mais queria era um homem bonito que a abraçasse. Muita chuva, a condizer com a tristeza da privação. Privação material e amorosa. E tudo é possível: as duas formas de privação podem conviver e podem contrapor-se. As pessoas que alguma vez passaram mal sabem bem o quão importante se torna cada momento, cada segundo, e sabem que alguns milagres podem verificar-se entre um e outro segundos. O milagre é a beleza surdir do nada entre a porcaria, é da pestilência alguma coisa, que não sabemos o quê, exalar um perfume inebriante. Um abraço, talvez. Uma refeição. O aconchego. Alguém chegar a casa, ser chamado de inútil ao mesmo tempo que é desejado, alguém poder sentir o conforto do desejo, um abraço, uma refeição. O retrato do Papa amigo dos trabalhadores pode consolar os desempregados, não matará a fome de um emprego, não restituirá as vidas perdidas, porque é mera maquilhagem, não é puro nem belo como eram as crianças levadas por Deus. Não é puro nem belo como a refeição que nos consola da fome.
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1 comentário:
Pois é mesmo parecido com o Fernando ;)
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