Diógenes de Sínope deixou as suas sementes: Onesicrito, Crates de Tebas e sua mulher, Hipárquias, Métrocles, irmão de Hipárquias, e Mónimo de Siracusa. Mais tarde, outros obscuros se juntam ao movimento: Bíon de Boristenes (filho de um escravo e de uma prostituta), Menipo de Gadara, o poeta Cercidas, Teles de Mégara, todos eles reduzidos pela História a um mero inventário de anedotas. Mas os ensinamentos de Antístenes, levados ao limite por Diógenes, floresciam e faziam escola: combater as ilusões idealistas, renunciar à fama, opor-se às leis limitadoras da liberdade, um esforço contínuo, um trabalho persistente na defesa da liberdade, mesmo que isso implicasse um combate aos prazeres ─ «Esse “desprezo pelos prazeres”, já pregado por Antístenes, é fundamental na vida do cínico, já que o prazer não só amolece o físico e o espírito, mas põe em perigo a liberdade, tornando o homem escravo, de vários modos, das coisas e dos homens aos quais estão ligados os prazeres. Até o matrimónio era contestado pelos cínicos, que o substituíam pela “convivência concorde entre homem e mulher”. E, naturalmente, a cidade era contestada: o cínico proclamava-se “cidadão do mudo”» (Giovanni Reale & Dario Antiseri). O desprezo pelos prazeres não configura um elogio do sacrifício, não segue a linha de desprezo pelo corpo apregoada por Platão, antes pelo contrário, ele dirige-se, como uma seta na direcção do seu alvo principal, aos inimigos da liberdade. O que importava a estes homens, antes de mais, era garantir a liberdade, e essa liberdade não se afigurava possível estando o homem cativo de bens materiais absolutamente supérfluos. Advoga-se o necessário em detrimento do supérfluo, o que, no contexto tenebroso da actualidade, significa tão-somente resistir à tentação depredadora do consumismo. A vida de Diógenes de Sínope, excessiva e licenciosa, é o exemplo mais limite desta postura: viver sem nada para viver com tudo, independente, “autárquico”, livre, oferecendo ao corpo os prazeres necessários, jamais sacrificando-o com prazeres rapidamente convertíveis em vícios escravizantes, em suma, denunciando a hipocrisia da vida social e exaltando a liberdade. Crates, discípulo de Diógenes, seguiu a mesma linha, a qual se foi reforçando no tempo até ao momento da condenação: «Ainda no séc. IV o imperador Juliano, o Apóstata, não deixará de condenar a irreverência e ousadia dos Cínicos remetendo-os para a austeridade dos tempos antigos» (Maria de Jesus Lorena Brito). Não admira que assim tenha sido, o “ideal cínico”, expressão que aqui se aplica com reconhecida infelicidade, já que o cínico é anti-ideal, não jogava a favor das manipulações levadas a cabo por quem, detendo o poder, começava a prometer reinados celestes em troca de vidas submissas. Crates, por exemplo, foi completamente riscado da história. Que exemplos perniciosos nos terá deixado? Defendeu que as riquezas e a fama eram males, reivindicou para a pobreza e para a obscuridade o estatuto de virtudes, em coerência com o que defendia vendeu todo o seu património, distribuiu os ganhos pelos seus concidadãos, transformou-se numa ameaça à ordem da cidade, era apolide, o que significava uma refutação de todas as leis que pretendessem confinar, circunscrever, limitar, traçar fronteiras entre os homens, criticava os costumes soltando gargalhadas da garganta… As gargalhadas de Crates ecoam o riso de Demócrito, dão-lhe volume, chocam contra a seriedade abstrusa do platonismo, contra o ódio à poesia, o ideal de uma cidade perfeita erigida sobre leis castradoras, são gargalhadas extremas e anárquicas, daí que tenham sido silenciadas. Eis alguns episódios que caricaturam estes heréticos filósofos: a Diógenes passeando-se em pleno dia com uma lanterna acesa, pernoitando no interior de uma grande ânfora, masturbando-se na praça pública, juntam-se Crates e Hiparquia, sua mulher, amando-se à luz do dia, sob «os olhares turvos, divertidos ou chocados dos cidadãos, dos metecos, das crianças ou das mulheres que passam por ali. Ele faz-se inocente e pergunta por que razão aquilo que toda a gente faz de forma privada, em casa, fechado num quarto, não se pode fazer do mesmo modo em público, diante dos olhos de toda a gente. Que se lixem as convenções e os hábitos culpabilizadores da carne!» (Onfray) Afinal, no princípio, Adão e Eva andavam nus e não sentiam qualquer vergonha por isso. De onde veio a vergonha? Quem a instalou entre os homens? Como surgiu esse repúdio pelo corpo? Que medo justifica a expurgação da carne?
Sem comentários:
Enviar um comentário