quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

A VIDA IDÍLICA


A vida idílica é uma jangada a descer o mississipi, é dormir nu debaixo das estrelas, é pescar um peixe e comê-lo e recusar a civilização.





Não possuo a sabedoria necessária para a determinação da vida idílica. Da dos outros, nada sei; da minha, pouco mais. Posso garantir que o spleen me atulhou na pastorícia, tanto quanto fui colhido pelas bucólicas no centro de algumas cidades. Um mês de mochila às costas foi idílio do qual guardo aquela imagem da coisa mais bela que me aconteceu. É óbvio que me vêm logo à consciência as filhas. Batatinhas: as filhas não me aconteceram, eu é que lhes aconteci. Portanto, um mês de mochila às costas foi a coisa mais próxima da felicidade que me aconteceu. E o resto é tremoços. Passo a explicar sem a tentação de me fazer passar pelo que nunca fui, cigano de trazer por casa ou índio pela trela, tanto faz, passo a explicar o fetiche da marcha. «A palavra «fétiche» deriva duma expressão portuguesa, feitiço; tem implicações de coisa mágica ou encantada, com o significado adicional de coisa embelezada ou falsa, como maquillage» (Bruce Chatwin, Anatomia da Errância). Deu-se o feitiço num Verão de 1998. Agora que penso na velocidade a que os pores-do-sol passaram por nós, nem quero acreditar termos pousado para a fotografia com um sorriso ao lado da campa do Morrison, outra na pedra que assinala a grandeza de Oscar Wilde, ou as pernas esticadas sobre os ossos de Eluard. Não sei se me faço entender. Estávamos em Paris e a vida idílica era um passeio pelo cemitério onde dormem os restos mortais de nomes que nos eram familiares por, como se diz, interposta criação. Logo a seguir encontramo-nos emparedados entre museus. Somos como aquelas estátuas sem cabeça (isto não é uma comparação), somos estátuas sem cabeça, andamos para ali de olhos postos em Vénus quando ainda nem sentimos o metal fundente das torres, as vistas largas nas alturas, a cidade saindo do rio em saltos de rã, para o melhor ser sentido nas escadarias do sagrado coração ou na água fresca com que matámos a sede junto ao Pompidou, depois de eu ter comprado um Sartre para inspirar a noite na companhia das espanholas Lola e Ana. Andámos pelas caves a ouvir Jazz. Era já de manhã quando a fotografia foi tirada. Lola pousa o olhar encandeado pela aurora no meu ombro descaído, a outra mostra um sorriso meigo de mãos nos bolsos. E eu com Sartre a tiracolo e uma vontade imensa de meter mais uma caneca abaixo. Nunca entendi as mulheres. Também nunca me entendi. Não entendo nada.

Retrato-me. Entendo o sol que se põe sobre edifícios milenares, entendo aquela luz que tomo para mim como um idílio somente comparável, sei lá, às pontes de Praga, aos mistérios sem mistério algum na Rua dos Alquimistas, um labirinto por onde Kafka terá andado a arrastar paixões revolvidas. Idílio também esse Anonymus à sombra do qual retratámos toda a nossa existência, no mesmo jardim onde as folhas adormeciam em queda lenta. Budapeste tem, de facto, caves obscuras que nos levam, pela moca ou pela imaginação, às charretes de Viena. Ei-la, a cidade, esperámos por ela tanto tempo, para assim que chegámos querermos ir embora. Tanta limpeza entope-nos o pulmão. «Não sabendo caminhar, dançar, nadar com o universo, o homem constrói brinquedos para si mesmo, isto é, modelos, prende-se a eles» (Kenneth White, O Espírito Nómada). Viena era uma gaiola da qual nos salvámos com um gato veneziano e uma talhada de melancia fresca perto da Praça de São Marcos. Veneza. Com que impressão ficámos de Veneza? Que seria bela, não fossem os homens. Que teria, talvez, a mesma beleza dos ilhéus caindo sobre o mar na viagem que fizemos para Atenas, na copa do Egitto Express, que teria, talvez, a beleza desses ilhéus aparecendo vagarosamente ao largo da vista, revelações surpreendentes para quem nada buscava senão o embalo do vento, Veneza seria tão bela quanto esse espanto não fosse o caso dos homens lhe haverem capturado todo o espanto com suas máquinas fotográficas. Prefiro registar de memória as ruínas de Atenas, uma terra transformada num soneto poluído, uma Acrópole engessada, o fim da civilização há 2000 e tal anos perdida para sempre porque para sempre se perdeu esse espírito com que um dia Diógenes afastou da vista um Imperador que lhe fazia sombra, que lhe tapava o sol. Agora é tudo Roma, eu à procura de uma bebedeira junto à Fontana di Trevi, confissões amigáveis onde se passam modelos, a moda das catacumbas assassinas, a desmemória dos cristãos ali comidos por leões enquanto a turba aplaudia, porque era assim naquele tempo, como agora a indiferença com que se premeiam assassinos, o ridículo, vê bem, de se elogiar a guerra ao receber-se um prémio pela paz. É este o nosso tempo. Também por ele cortámos a cabeça, por isso somos, somos mesmo, acredita, estátuas sem cabeça, quer estejamos em Paris ou em Roma, no berço da nossa consciência ou no tribunal da nossa liberdade.

Que tudo fosse como aquela inscrição inesperadamente encontrada – Animula vagula, blandula - que já conhecíamos das páginas de Yourcenar. Desconhecíamos o paradeiro que ela tem na pedra tumular. E agora que a lembramos, reconhecemos que também nós demos a nossa volta pela prisão, se calhar estamos sempre às voltas pela prisão, como um periquito numa gaiola, como aqueles tigres nas jaulas do zoológico, andando de cá para lá e de lá para cá, às voltas, às voltas, de mochila às costas, de mãos nos bolsos, caminhando pela cidade com o idílio nos olhos ou pelo campo com o spleen epidémico dos anjos com asas de bronze (isto não é uma metáfora). Está-se a acabar o tempo, Ginsberg passeia-se nas avenidas de Barcelona, nós somos o pombo correio que anuncia a catástrofe, temos a tragédia anilhada nos pulsos. «A paixão pela viagem não abandona o corpo de quem experimentou os intensos venenos do desconhecido» (Micel Onfray, Teoria da Viagem). A sagrada família espera por nós, a ela retornamos com a impressão entranhada no corpo de que a vida idílica até pode ser uma jangada a descer o Mississípi, mas não deixa também de ser o trânsito permanente de quem não está bem em lugar algum, às vezes doendo os sorrisos, outras vezes coçando as lágrimas, isto é, cofiando a barba à medida que a pele encarquilha e o hálito apodrece. Por isso mesmo, po isso e por isto, em breve regressarei a Amesterdão.



Nota: a fotografia foi tirada em Budapeste, 1998.

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