sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

ELOGIO DO CINISMO (10)


A psicologia das multidões é conhecida. Le Bon, Freud e Canetti perseguiram e narraram as suas deambulações, os movimentos desse animal desprovido de cérebro, a sua ductilidade e submissão quase sistemática aos demagogos, os melhores condutores dessas energias que buscam um mestre, um guia, um chefe. Caudillo em espanhol, Fuhrer em alemão, Duce em italiano, Conducator em romeno, em cada uma destas ocasiões o monstro fornece a oportunidade para captar e raptar energia, em proveito das máquinas totalitárias. Irradia o irracional, triunfam os mofos dos subsolos e as geologias primitivas; as matilhas e as massas desencadeiam potências sempre demasiado devotas a Tanatos para que ainda possamos desejar celebrá-las. Não levar em consideração as lições pessimistas que foram dadas pelo povo prostituído neste século seria um acto culposo. Oferecido aos tiranos imperiosos no seu querer, ele revelou a sua natureza frouxa e o seu tropismo trivial.
Com a revolução industrial entrámos na era em que as multidões nacionais se tornaram planetárias no final do século XX. O que valia, ontem, para umas, vale, agora, para outras: nada de raciocinar, mas, antes, uma existência propensa a agir cegamente, dirigidas para as acções contagiosas e hipnóticas, para a sugestibilidade máxima, a impulsividade e a irritabilidade, para o autoritarismo, o conservadorismo e o simplismo, as multidões apelam ao mestre que lhes ofereça, em câmbio, uma voz e a palavra. Depois, dobram-se ao seu querer, poderosas e perigosas, imperiosas e não suportando a resistência ou a oposição. O dandy fornece a antítese radical do homem das multidões, ele opõe a sua singular vitalidade às pulsões de morte que operam no corpo de qualquer agregado social. O cínico combate o poder dos príncipes e dos poderosos, o dandy o dos povos e das massas. Dandy foi Romain Gary que, chegado ao pé do Arco do Triunfo com as suas medalhas de resistente e de combatente, a sua bandeira e a sua memória, para defender um general De Gaulle que julgava só e abandonado, bateu com os tacões e deu meia-volta, depois de ter descoberto a canalhice da massa, com o ódio assestado para uma cena de caça anunciada.
O populismo age como o inimigo mais certo do povo que, um dia ou outro, esvaziado da sua substância por um ditador ou por um tirano, um demagogo ou um tribuno, deita à rua uma nação exangue por ter querido e seguido as palavras de ordem fixadas por uma retórica activa à maneira do «slogan», do catecismo, da falsa ideia, verdadeira operação de captação e transmutação de energia neutra em negatividade actuante. A soberania directa do povo, a religião do referendo ou os apelos ao bom senso popular, abrem armadilhas sob todas as energias rebeldes e inteligentes. Vem de Baudelaire, esta sentença explosiva: «O verdadeiro progresso (quer dizer, moral) só pode existir no indivíduo e através do próprio indivíduo.» Não há dandismo sem se subscrever integralmente a esta evidência.
Recentemente, Cécile Guilbert propôs uma leitura da obra do último Guy Debord, relacionada com o dandismo baudelairiano. Essa leitura convincente mostra-nos o devir trágico, mas ainda lúdico, de um pensador para o qual a visão do mundo, sob o registo espectacular, e, depois, sob o registo do espectáculo integrado dos últimos anos desse século, constituiu a oportunidade para uma actualização das teses situacionistas da deriva, da psico-geografia, da construção de ambientes, de uma civilização do jogo, do culto do estilo e da recusa dos ídolos do dia. A poetização do real, a escrita artística da resistência libertária, o devir revolucionário de um indivíduo ─ noutros tempos autor de uma teoria coerente da revolução ─ mostra como, no percurso de um mesmo homem, a passagem da sociedade disciplinar à sociedade de controlo, com um estrondo em Maio de 68, induz uma conversão ao convite deleuziano para o devir revolucionário dos indivíduos.
Um dos maiores dandis deste século, Marchel Duchamp, morreu em data oportuna, se considerarmos as correspondências históricas, no dia 2 de Outubro de 1968, após a Primavera quente que conhecemos. Depois de um jantar com Man Ray, Robert e Nina Lebel, no seu apartamento situado no n.º 5, Rua Parmentier, em Neuilly, o pai de toda a modernidade estética depois de Nietzsche, aparelho de engrenagem nietzscheano por excelência, desaparece vitimado por uma embolia, com 81 anos. Numa das suas anotações, podemos ler o seguinte: «A minha arte consistiria em viver; cada segundo, cada sopro respiratório é uma obra que não se encontra inscrita em lado algum, que não é nem visual, nem cerebral. É uma espécie de euforia constante.» O cinismo e o dandismo do libertário supõem esta perpétua euforia que pode ser obtida pelo desejo e pelo prazer na acção.
O devir revolucionário do indivíduo também se encarna nessa transfiguração libertária, que pede emprestada à libertinagem do grande século e, mesmo, das Luzes. Desde as mais antigas definições contemporâneas das reflexões de Graciàn que o libertino caracteriza, em primeiro lugar, o sujeito liberto, aquele que não reconhece nenhuma obrigação, nenhuma lei, nenhum constrangimento e que confessa uma propensão em obedecer à sua queda natural. É já o «nem Deus, nem mestre» ou, antes, nem deuses, nem mestres. Depois, ao afinar-se a definição, com a ajuda de Littré, o libertino caracteriza o indivíduo rebelde em relação a todas as tentativas de sujeição empreendidas contra a sua autonomia e independência. Indócil, insubmisso, rebelde, reticente a qualquer laço social, vive como inimigo das leis, em perpétua oposição às figuras da autoridade encarnadas pelo Comendador. Também gosto de lembrar, à porfia, que em termos de falcoaria, um libertino designa um pássaro que, educado e amestrado para voltar ao braço do seu dono, um dia vai-se embora e não volta mais.


Michel Onfray, in A Política do Rebelde – Tratado de Resistência e de Insubmissão, trad. Carlos Oliveira, Instituto Piaget, 1999, pp. 196-198.

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