sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

AULA DE POESIA

Em Portugal não há aulas de poesia. Quando muito, uns cursos de intensidade média-baixa, workshops de escrita criativa, ou seja, uma escrita sem criatividade alguma. Porque, em Portugal, há um gene poético que predispõe qualquer português não só para se tornar poeta como também para tudo saber e tudo poder ensinar acerca dessa ciência do disfarce que dá pelo nome de Poesia (vai com maiúsculas, para fazer justiça à grandeza do país). Que um poeta e crítico de poesia (dupla condição que prolifera entre nós) chame Aula de Poesia a uma recolha de textos sobre livros de outros poetas, só pode denotar um saudável sentido da ironia que é viver num país onde toda a produção poética, para não falar da produção crítica, interessa apenas àquela meia dúzia de gatos-pingados que ainda lê poemas. Desconfio mesmo que, desta meia dúzia, metade sejam poetas ou aspirantes a. Se subtrairmos o professorado, que, como sabemos, acaba muitas vezes por ser indistinguível daquela metade, ficamos com uma ínfima parte de leitores sem aspirações. A dúvida é: será que lhes interessa uma aula de poesia? Duvido.

Muito por culpa de uma saudosa coluna mantida durante vários anos na revista LER, Eduardo Pitta (n. 1949) foi-se afirmando, sobretudo, como crítico literário. Preferiria chamar-lhe leitor atento, com um sentido crítico muito próprio, pois a escrita de Pitta raramente se aventura por uma análise especulativa das obras. Ao relermos os textos agora coligidos, percebemos claramente que o registo é outro. A recolha intitulada Metal Fundente (Quasi Edições, Maio de 2004) já havia sublinhado o interesse pelo apontamento biográfico, tendência que volta a manifestar-se determinante nos textos de Aula de Poesia (Quetzal Editores, Janeiro de 2010). Esta propensão para o biografismo acarreta um problema evidente: não havendo biografia, os textos perdem fôlego. Não admira, pois, que das recensões agora recuperadas, as menos interessantes sejam, regra geral, aquelas que têm por objecto um livro de um autor mais recente. O texto dedicado a Gonçalo M. Tavares, por exemplo, é de uma pobreza exasperante. Em 35 linhas, 8 ocupam um primeiro parágrafo onde se enumeram alguns autores contemporâneos mais prolixos, 8 linhas são para informações genéricas sobre a obra do autor, duas citações do livro ocupam 13 linhas, restando, sobre a obra, basicamente 4 interrogações e uma hipótese: «Podia ser uma reacção ao excesso de legibilidade dos anos 90, mas nem isso é, porque a estranheza da forma não oblitera o fio do discurso» (pp. 80-81). Fala-se ainda de poesia como mantra, mas fica a sensação de que nada havia para dizer.

Ao contrário, alguns textos sobre “autores menos novos” revelam-se assaz atraentes, quer pela informação biográfica que proporcionam, quer pelo enquadramento que sugerem da obra. Sublinho, entre outros, o texto de uma conferência sobre António Botto e as prosas dedicadas a Camilo Pessanha e Judith Teixeira, mas também os dois textos onde Eugénio de Andrade aparece evocado, sobretudo por neles ter entrevisto comentários muito mais desinibidos do que as leituras fastidiosamente apologéticas que geralmente são dedicadas ao autor de As Mãos e os Frutos. Os textos sobre Rui Knopfli, Luís Miguel Nava e João Miguel Fernandes Jorge cabem no que de melhor tem esta recolha, sendo igualmente de registar algumas leituras onde podemos descobrir enumerações, correcções, lembretes que permitem montar, como se de um puzzle se tratasse, o olhar do crítico sobre a actualidade literária: «A poesia portuguesa do século XX não tem uma antologia decente» (p. 34), «a poesia não é um jogo de salão» (p. 84), «a representatividade releva do conjunto da obra (muitas vezes desdobrada em vários géneros) e da intervenção do autor na sociedade, a qual se deve não confundir com visibilidade mediática» (p. 93), «a poesia portuguesa tornou-se um feudo académico» (p. 146), etc.

No entanto, o estilo de Eduardo Pitta deixa-me sempre dúvidas sobre uma real conformidade entre o afirmado e o praticado. Não sei até que ponto é necessário frequentar os salões para se poder dizer que a poesia não é um jogo de salão, ou se as cedências ao “feudo académico” e uma especial atenção a um putativo “cânone”, com apreciáveis excepções, como é óbvio, não legitimam e reforçam esse mesmo feudo. Pormenores de estilo, talvez, que permitem citar Carlo Vittorio Cattaneo, Barthes, Ducrot, Joaquim Manuel Magalhães (em dose dupla), Harold Bloom, Américo António Lindeza Diogo e Manuel Frias Martins, num mesmo texto, breve, a propósito de um livro de Nuno Júdice. O uso e abuso de estrangeirismos, locuções latinas, entre outras, reforça a pose: ars erotica, ars poetica, avant la lettre, bon vivant, bric-à-brac, close reading, corpus, deadline, diktat, engagement, establishment, ex aequo, expertise, freedom fighters, free lance, happy few, in progress, insert, intelligentzia, Kenosis, Kitsch, lead, leitmotiv, lobby, malgré, naïveté, nonsense, notebook, outsider, overact, plot, post scriptum, private joke, queer, scholar, script, soixante-huitard, success d’estime, tour d’horizon, travelling, turning point e, last but not least, virtuose. Enfim, caso para dizer que não havia necessidade.

Escrito para o Rascunho.

5 comentários:

Plasticine disse...

Há dias pus-me a pensar ainda numa outra questão: porque é que há cursos superiores para todas as artes e para a literatura não?
Não sei se devia ou não existir, mas não deixa de ser intrigante.

hmbf disse...

Plasticine, que melhor aula do que muita leitura e muita escrita?

Plasticine disse...

aliás eu disse mal...não é não haver de literatura como estudo, mas também para aprender a escrever. O que dizes deve ser verdade. Só que... e a pintura? Não podíamos dizer alguma coisa parecida? É por isto que me intriga.
Talvez a literatura seja uma forma de arte maior que qualquer estudo :)

hmbf disse...

Plasticine, eu sou daqueles que pensa que a escola só serve para desamprender.

Plasticine disse...

A escola como ela acontece aqui, sim.