segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

DEVAGAR


à Catarina


Quando devagar te doerem os peitos e colocares
as mãos em concha para reparar que ainda não enche

mas quase

Quando o espelho te devolver, devagar, esses beiços
carnudos entreabertos ao sopro do primeiro beijo
que ainda não tiveste

mas quase

(nesse dia o elevador matou a gata preta. Cortou-lhe a vida pelo pescoço. Surgiu-te na cara grão a grão um silêncio tremendo. Deixaste-nos saber que a gata, por se ir embora, havia de mandar em troca uma árvore. Que podíamos parar de chorar.)

Quando puseres a mão entre as pernas e sentires que molha, vires os dedos vermelhos e rebentares no ar uma gargalhada, uma erva, um estremecer, um simples sorriso, talvez o espelho te devolva então a lágrima, subindo às goelas a canção fininha que tens levado pelos teus poucos anos com tanto peso, a convencer o mundo de que ainda não existes,

mas quase

(disseste que os macacos, porque faziam amor tão depressa e com tantas macacas, tinham filhos à toa. E atiraste-me esses olhos pretos, indignados e tristes. Trepaste à árvore e vergaste, cabeça suspensa como um fruto, e os teus cabelitos lançaram alguns raios ao sol.)

Quando afastares as pernas e esticares os pés, esticares os braços o peito o chão do ventre, distribuíres olhos a dar entrada ao vento para depois te fechares como uma aranha sobre isso tudo com os membros que então tiveres, e gemeres de gozo ao morder por fim uma coisa tua que não será a primeira

mas quase

e embarcares nessa desforra que dá genica às pernas, nos empurra para longe e deixa respirar

eu vou sentir-me pequeno como um cais quando o navio solta os cordões e parte para acolá sem se voltar, e começa a descobrir que o mar não é tudo

mas quase


Manuel Cintra, in do lado de dentro, Presença, 1981, pp. 35-37. Este poema não coube na antologia.

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