quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O LAÇO BRANCO

É uma questão tão recorrente que se tornou vulgar. E, como todas as coisas vulgares, amolece à passagem do tempo. Deixamos de pensar nelas, transformando as questões em respostas, as dúvidas em trivialidades. O problema da vulgaridade é o princípio da indiferença. Tudo o que nos deixe de espantar, indignar, perturbar, corre esse risco do desinteresse. Sabemos do vírus que é a apatia, mas pouco ou nada conseguimos contra tal risco se nos deixarmos dominar pelos estereótipos, pelas ideias feitas, pelo bom e fácil do senso comum. O que a poesia tem de melhor é a afronta a este desleixo. Pois está que, de quando em vez, a pergunta volta a emergir: o que torna possível a existência de monstros? Ou, a título de exemplo: o que tornou possível que uma nação inteira, ou quase, tivesse acompanhado Hitler nas sua humanas loucuras? Estas perguntas são tanto mais difíceis se nos lembrarmos que tendemos a esquecer, omitir, negligenciar todos aqueles que, fazendo parte da nação alemã, se recusaram a engraxar as botas do füher, esticando o braço apenas para pedir boleia para o exílio, para o cárcere ou, nos casos talvez mais bafejados pela sorte, para a vala comum. Michael Haneke ensaia uma resposta a dúvidas similares no filme O Laço Branco. Melhor seria dizer que especula sobre a origem dos monstros neste seu filme a preto e branco. Cineasta com tendências para mergulhar nos requintes da violência psicológica, acompanho-o desde Funny Games (1997). Vi La Pianiste (2001) uma única vez e jurei para nunca mais. Deve ter sido o filme mais agressivo a que alguma vez assisti. Pelo menos, perturbou-me irremediavelmente. Tocou-me nas feridas abertas que a intimidade gostaria de poder recalcar não fosse a poesia um parasita insaciável. Caché (2005) actualizou a paranóia com requintes de malvadez sem par numa época em que os filmes estão pejados de violência gratuita e na nossa vida quotidiana desfilam a toda a hora e por todo o lado imagens cujo único efeito é, ao mesmo tempo e na mesma medida, banalizar o terror e gerar um medo suicida. Paradoxal? Nem por isso. Hoje, tudo se mostra para que nada se veja. O medo suicida alimenta a indústria do proteccionismo, manipula-nos a vontade de (auto)domínio, confronta-nos com um conjunto imenso de debilidades físicas, morais, psicológicas que alimentam a mais fácil das armas massivas de autodefesa: a indiferença. Das Weisse Band (O Lenço Branco) é, neste contexto especulativo sobre a origem dos monstros, o melhor dos filmes de Haneke. É-o, também, por recusar mostrar aquilo que outros escancaram. E, verdade seja dita, não o mostrando, as coisas vêem-se muito melhor. Que ele cole a crueldade, a monstruosidade, a barbárie às imaculadas criancinhas sufocadas pelo excesso de formalismo familiar só lhe fica bem. A aldeia do filme é apenas um cenário microscópico para nações inteiras erigidas sobre os vulcões adormecidos do opróbrio, da censura, da vergonha, de papas autoflagelando-se e de pastores que violentam, açoitam, agridem, humilham os filhos por nada que justifique tamanha cólera. Da subjugação laboral a um barão despótico à raiva contida dos trabalhadores revoltados, da vergonha que leva ao suicídio ao medo que impele à fuga, do autoritarismo moral imposto pela religião à excessiva formalidade que governa os comportamentos sociais, dos segredos íntimos aos podres coscuvilhados, há toda uma conjugação de situações violentíssimas que prescindem do sangue para que a dor nos seja constantemente mostrada sem pruridos nem lacunas. O preto e o branco do filme tornam ainda mais congruentes as subtilezas do argumento, fazendo uma ligação entre a aparente ordem exterior das coisas e a latente desorganização íntima das personagens, todas elas constituídas numa posição de explosão iminente. O termo da trama será o início da Primeira Grande Guerra. O nazismo e a sua inigualável máquina de morte encontram nas personagens deste filme possíveis justificações. De facto, não será muito difícil encontrar uma resposta para as questões inicialmente aludidas depois de nos cruzarmos com os habitantes da aldeia retratada neste filme. Ainda que psicossocialmente convencional, o tiro não deixa de ser certeiro: quanto maior for a opressão exercida pela sociedade sobre o eu individual, mais facilmente se torna este numa séria ameaça à individualidade do outro. Quem duvidar que atire a primeira pedra.

3 comentários:

AGD disse...

Um grande filme! O melhor que vi nos últimos tempos.

hmbf disse...

Somos dois.

Jasmim disse...

Somos três.