Lembrei-me agora que ainda não comi nada e já só me restam 212,84€. A ventania está de volta, ameaça arrancar-me os estores da casa. Espero que não faça estragos. Falta-me orçamento para reparações e não tenho seguro. O meu seguro, nestas ocasiões, é a oração. Mas a verdade é que nem um ateu que reza vive de se alimentar à base de mezinhas. Portanto, há que enganar o estômago com uma bucha. Arrumemos a um canto o subsídio de alimentação. Não interessa para aqui. É justo, tendo em conta que não tenho feito as contas ao orçamento contando com os encargos paternos. Imaginemos, pois, que as duas filhas não comem ou que se alimentam à base de ervilhas. Façamos antes de conta que elas não existem, que não farão parte das nossas preocupações orçamentais. Podemos assim esquecer toda uma série de despesas que nem convém lembrar, para bem da nossa saúde mental. Alimentação, roupa, escola, lazer, higiene. Higienizemos o orçamento pela tabela da vida solitária. Por uma vez na vida, a família ficará no saco. Portanto, restam-me 212,84€ para comer. Sendo eu um homem de peso, poderá o leitor supor que sou igualmente um desses escravos do alimento que reclamam por tudo e por nada. A verdade é que o meu estômago vive bem com pouco, ainda que pouco por vezes pareça muito e, noutras ocasiões, nos faça pensar que andamos perto de nada. De quando em vez, cometo umas loucuras. Mariscada na Nazaré, bacalhau à campino no Guisado, bife da vazia na Portugália, uma imperial e uma chamuça numa esplanada qualquer. É raro. Regra geral, desenrasco a fome com o que está à mão. Vou então supor que 6€ por dia me chegam perfeitamente para pequeno-almoço, almoço e jantar. Nada de lanches nem de ceias, que o estômago, não estando danificado, dificilmente resistiria a dietas mais exigentes. 6€ por dia. Parece-me uma diária razoável e justa. Multiplicamos por 30 dias e obtemos a módica quantia de 180€. Subtraído este valor aos 212,84€ que nos restavam, ficamos com 32,84€. Uma fortuna que ainda terá de chegar para as receitas médicas, para o MEO, para o cinema, o teatro, a ópera, para as estadias em hotéis de luxo sempre que viajamos, porque nos fartamos de viajar, uma fortuna que teremos de aprender a multiplicar se quisermos, sei lá, mudar as lâmpadas do tecto, as pilhas dos comandos, comprar toalhas, artigos de limpeza, incenso, uma fortuna que terá de ser distribuída, com lógica e propriedade, pelas carências de satisfação mais premente. O cão pode morrer à fome. E não se admirem se tivermos os dentes estragados. Com um ordenado destes, quem consegue pagar a um dentista?
10 comentários:
Tens que aderir à marmita, sério. Desde que comecei a fazer isso, o meu orçamento ficou com uma saúde melhorzinha. Ainda assim, continuo a sentir-me uma pelintra :) Mas uma pelintra em bom!
A marmita é um bom investimento, mas duvido que te safe dos 6€ diários. Talvez adoptando um estilo de vida vegetariano. :)
Ultimamente venho considerando a sério os assaltos a bancos como meio de vida... ou nem tão a sério assim, já que brinco com a possibilidade...
Abraço!
Não deixa de ser uma possibilidade em aberto.
Desculpe lá, mas a necessidade aguça o engenho. E o seu é evidente quando relata as agruras da ginástica financeira a que anda obrigado. Gosto mesmo destes textos. Eu sou pela marmita. Já vai para cinco anos. Desde que me casei e ganhava o salário da miséria. Hoje já ganho mais, mas ainda ando atafulhado em dívidas de outros tempos. Com a marmita, poupa-se, é certo, varia-se mais e às vezes até se come melhor. Mas entranha-se mais na pele o sentimento de pelintra.
...a necessidade aguça o engenho...
Lá isso.
Apenas para deixar às claras que o meu comentário acima tão somente apontava os extremos sobre os quais gosto de debruçar quando "brinco" de escrever... :)
Vai que alguém possa levar a sério piadas que se faz para que o tom do estômago a roncar seja menos audível?:)
Quanto às marmitas... cá no Brasil corre-se o risco de ingerir não somente as receitas preparadas, mas também algo que o leve à grave intoxicação. Embora o seu uso seja proibido pela legislação, por exemplo, a quantidade de salitre que se encontra nos preparados é assustadora. Há de se escolher muito bem o fornecedor da marmita, o que não é nada fácil...
De qualquer maneira, concordo com o HMBF: cá desse lado do Atlântico, o preço da marmita é equivalente ao que se gasta ao preparar com as próprias mãos modestas refeições. A diferença é que, assim sendo, sabe-se muito bem o que foi à panela...:)
Abraço!
Daniel, pois, pois. A questão é só esta: se pensares assaltar um banco, lembra-te de mim. :)
Bem, eu entendo por marmita preparar a refeição em casa e transportá-la para o trabalho. Na marmita. Tipo, pega na lancheira e vai levar o almoço ao pai. Não comprar essas coisas esquisitas já preparadas. Estamos equivocados?
Tenho o mesmo entendimento da marmita :)
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