segunda-feira, 22 de março de 2010

O PÉQUE

Camarada Van Zeller, afinal isto de estar doente tem as suas vantagens. Uma visita da mãezinha deixou-me mais confortável até ao final do mês. Além de uma caixa com pastéis de nata e pampilhos, que rapei num fechar de olhos, ficou-se-me a carteira apetrechada. Deu para encher o depósito, recuperar o investimento na medicamentação e na consulta. Até deu para comprar o jornal. E, pasme-se, para lê-lo. Fiquei com pena do meu médico, que me confessou durante a consulta não ter sequer tempo para ler o jornal. Diz que os compra e não os lê. Uma vida de mouro a pedir reforma antecipada. Ele disse-me que achava que eu estava a chocar uma depressão. Eu respondi-lhe que o que me deprimia naquele momento era estar ali a ouvir o óbvio e ainda ter de pagar 40€. A depressão está mais que chocada, ó doutor. Então o que lhe corre mal, perguntou-me ele. A mim, especialmente, nada. Na verdade é isso que me deprime. Corre-me tudo muito normalmente, um tédio, uma chatice, uma insuportável rotina. Eu queria ser como você, disse-lhe, não ter tempo para ler jornais nem para aproveitar as promoções das livrarias. Por exemplo, esses péques maravilhosos: leve dois pelo preço de um. Basicamente, o oposto do outro péque: pague três, não leve nenhum. E isto deprime-me. Camarada Van Zeller, cada vez me convenço mais de que você tem o dom da razão. Afinal, há que começar por cortar no salário mínimo. Eu ainda pensei que você estivesse a referir-se ao salário mínimo dos gestores públicos, dos penedos e dos soares. Mas estava enganado. E bem. Você tem toda a razão. Devemos começar a cortar no salário mínimo dos desempregados. Essa gente é o cancro da nação. Não fazem nenhum e ainda lhes pagam. O desgraçado do meu médico farta-se de trabalhar e pagam-lhe com isto: nem tempo tem para ler jornais. Eu farto-me de ver esses desempregados lambões nas mesas dos cafés, ali o dia todo a folhearem jornais. E ainda se dão ao luxo de os sublinhar. E fazem recortes. E gastam dinheiro em telefonemas para responderem a anúncios só pelo prazer de estarem ali o dia todo à conversa. Cambada de gosmas. É isto que me deprime, ó doutor. Anda um gajo a trabalhar o dia inteiro para sustentar estes péques, anda um homem a fazer sacrifícios para sustentar malta desta. Não pode ser. Premeie-se quem trabalha, os penedos e afins, gente rija como a pedra. Sacrifique-se quem é mole, os desempregados e os privilegiados do salário mínimo nacional. Agora toca a fazer filhos. Sem mais, espero que não me leve a mal o tom informal. Se o trato por camarada é apenas por sentir pela sua pessoa a mais pura estima e consideração.

11 comentários:

Anónimo disse...

O seu blog não é uma depressão?!

hmbf disse...

É.

Anónimo disse...

Talvez leia o Correio da Manhã num tempo próximo, os anuncios numa tasca próxima de casa.

hmbf disse...

Sou leitor assíduo das centrais. Gasto fortunas em telefonemas.

Anónimo disse...

Acredito....

hmbf disse...

Acredite, que é verdade. Eu próprio tenho lá um anúncio. Aqui que ninguém nos ouve, sou a Xuxa Morena.

jaa disse...

Eu gosto do Peck. A fazer de Capitão Ahab, por exemplo. Ou de Atticus Finch.

(Sou capaz de escrever um post sobre o assunto...)

Anónimo disse...

Acredito.

hmbf disse...

Eu gosto mais do Peckinpah.

hmbf disse...

Descontos especiais para anónimos que vão e voltam vão e voltam vão e voltam vão e voltam a weblogs-depressão. Para eles, fantasias masoquistas.

jaa disse...

Por que será que isso não me surpreende?

(Eu também gosto do Peckinpah.)