Camarada Van Zeller, afinal isto de estar doente tem as suas vantagens. Uma visita da mãezinha deixou-me mais confortável até ao final do mês. Além de uma caixa com pastéis de nata e pampilhos, que rapei num fechar de olhos, ficou-se-me a carteira apetrechada. Deu para encher o depósito, recuperar o investimento na medicamentação e na consulta. Até deu para comprar o jornal. E, pasme-se, para lê-lo. Fiquei com pena do meu médico, que me confessou durante a consulta não ter sequer tempo para ler o jornal. Diz que os compra e não os lê. Uma vida de mouro a pedir reforma antecipada. Ele disse-me que achava que eu estava a chocar uma depressão. Eu respondi-lhe que o que me deprimia naquele momento era estar ali a ouvir o óbvio e ainda ter de pagar 40€. A depressão está mais que chocada, ó doutor. Então o que lhe corre mal, perguntou-me ele. A mim, especialmente, nada. Na verdade é isso que me deprime. Corre-me tudo muito normalmente, um tédio, uma chatice, uma insuportável rotina. Eu queria ser como você, disse-lhe, não ter tempo para ler jornais nem para aproveitar as promoções das livrarias. Por exemplo, esses péques maravilhosos: leve dois pelo preço de um. Basicamente, o oposto do outro péque: pague três, não leve nenhum. E isto deprime-me. Camarada Van Zeller, cada vez me convenço mais de que você tem o dom da razão. Afinal, há que começar por cortar no salário mínimo. Eu ainda pensei que você estivesse a referir-se ao salário mínimo dos gestores públicos, dos penedos e dos soares. Mas estava enganado. E bem. Você tem toda a razão. Devemos começar a cortar no salário mínimo dos desempregados. Essa gente é o cancro da nação. Não fazem nenhum e ainda lhes pagam. O desgraçado do meu médico farta-se de trabalhar e pagam-lhe com isto: nem tempo tem para ler jornais. Eu farto-me de ver esses desempregados lambões nas mesas dos cafés, ali o dia todo a folhearem jornais. E ainda se dão ao luxo de os sublinhar. E fazem recortes. E gastam dinheiro em telefonemas para responderem a anúncios só pelo prazer de estarem ali o dia todo à conversa. Cambada de gosmas. É isto que me deprime, ó doutor. Anda um gajo a trabalhar o dia inteiro para sustentar estes péques, anda um homem a fazer sacrifícios para sustentar malta desta. Não pode ser. Premeie-se quem trabalha, os penedos e afins, gente rija como a pedra. Sacrifique-se quem é mole, os desempregados e os privilegiados do salário mínimo nacional. Agora toca a fazer filhos. Sem mais, espero que não me leve a mal o tom informal. Se o trato por camarada é apenas por sentir pela sua pessoa a mais pura estima e consideração.
11 comentários:
O seu blog não é uma depressão?!
É.
Talvez leia o Correio da Manhã num tempo próximo, os anuncios numa tasca próxima de casa.
Sou leitor assíduo das centrais. Gasto fortunas em telefonemas.
Acredito....
Acredite, que é verdade. Eu próprio tenho lá um anúncio. Aqui que ninguém nos ouve, sou a Xuxa Morena.
Eu gosto do Peck. A fazer de Capitão Ahab, por exemplo. Ou de Atticus Finch.
(Sou capaz de escrever um post sobre o assunto...)
Acredito.
Eu gosto mais do Peckinpah.
Descontos especiais para anónimos que vão e voltam vão e voltam vão e voltam vão e voltam a weblogs-depressão. Para eles, fantasias masoquistas.
Por que será que isso não me surpreende?
(Eu também gosto do Peckinpah.)
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