quarta-feira, 31 de março de 2010

SANTO SUBITO

Não gosto de rótulos e desprezo etiquetas, mas por vezes o sentido de orientação obriga-me a resvalar numa certa sinalética histórica. No mundo das poesias, poucos conceitos ou classificações me provocam mais desdém do que esse dos novíssimos. É um conceito vazio e palerma cuja sustentabilidade se deduz em oposição ao conceito de velhíssimos. Novíssimos, pois então, serão os poetas muito novos. Não necessariamente de idade, mas de livros publicados. Novíssimos serão aqueles que se aprontam para o baptismo pelo santo reconhecimento dos velhíssimos. Mais facilmente acreditaria na poesia se cada poema valesse por si só, sem idade e sem nome. Tope-se no caso Miguel-Manso. Duas colectâneas pagaram-lhe a portagem: Contra a Manhã Burra (Maio de 2008), Quando Escreve Descalça-se (Trama, Novembro de 2008). A crítica dita especializada, cozinheiros de ínfimos estrelatos e considerações baptismais, viu na sua poesia uma aragem renovadora do versejar que por terras lusas se vai praticando. Estranha descoberta, sobretudo para aqueles que, tendo em conta o desfile de prosas elogiosas distribuídas à la carte, estavam convencidos de que a poesia portuguesa não carecia de qualquer renovação.

Com tanto poeta de categoria, com tanta poesia de excelência, com tanto livro publicado para meia dúzia de leitores, o que veio então a voz de Miguel-Manso acrescentar ao enfatuado reinado da poesia nacional? Nada, digo eu. E ainda bem. Porque a única coisa que há nos “carimbos de Gent” é uma voz a fazer-se carimbar, sem parangonas, no gozo de uma escrita que tem sabido alhear-se da seriedade com que os fundamentalistas do poético falam destas coisas. De agora para trás, podíamos ir de Miguel-Manso a Nuno Moura, deste a Adília, desta a Assis Pacheco e por aí fora até O’Neill, um certo Cesariny, etc. & tal. Sem cintos de bombas atados aos versos, o que estes entre outros “celebráveis” poetas nos ofereceram/oferecem foi/é o teatro da vida sem o idealismo formal daqueles que pretendem fazer da sua voz a voz de todos nós. Sendo a poesia uma das mais vetustas formas de expressão, os seis conjuntos de textos agora coligidos por Miguel-Manso vêm relembrar o papel e o lugar do texto poético não só no mundo em que se inscreve, mas também na vida que o imprime. E a advertência não deixa margem para dúvidas: «se está a pensar, eventual leitor, acompanhar-me / mesmo que de modo fortuito, neste escusado exercício / saiba que nunca estive tão perdido como agora // duvide de tudo o que lhe parecer escorreito / não se deixe enganar sequer pela imprecisa / citação dos clássicos» (p. 105).

Em nenhum dos três livros até agora publicados por Miguel-Manso a poesia e a sua sacrossanta natureza se transforma tanto em tema como neste. Com uma ironia por vezes cáustica, os poemas deste livro jogam com a sua própria condição, recuperam o riso perdido na mórbida seriedade dos vates impregnados de importância. Torna-se isso evidente logo ao primeiro poema: «A poesia, tipo, / não precisa de, bom, / não é exactamente uma canção, uma praça ou um parque no Outono» (p. 13). Do que precisa a poesia, não sabemos nem estamos preocupados em saber. Somos levados a crer que estes textos de Miguel-Manso a que chamamos poemas precisam de referências, precisam de transformar em personagens nomes cujo peso histórico se perde na leveza dos versos, precisam de um olhar apaixonado que vislumbra na beleza das coisas concretas uma exigência de conservação que nenhum poema parece merecer, precisam de resgatar essa beleza, precisam de a trazer para dentro de si quase como de água precisa um homem, precisam de capturar dos lugares os seus ínfimos pormenores, precisam de ruas, de andar à deriva pelas ruas, precisam de um certo cheiro a hortelã nas manhãs húmidas da província, nas tardes quentes da cidade, precisam de uma grande e ingénua lição, precisam de si próprios porque nem disso precisam.

Não nos admiremos, pois, da diversidade de lugares que dão vida a estes poemas, das situações (de)formadas pelo olhar interveniente do poeta, não nos admiremos da música ligeira, a espaços improvisada, que embala as palavras numa dança imprevisível, mesmo quando certos remates nos soam fáceis e a toada aforística ameaça o verso. Pessoalmente, não concebo um livro de poesia de outra forma. Irritam-me as cabeças penteadas e não espero da poesia senão uma forte e irregular ventania. A bem dizer, estou-me nas tintas para a arrumação dos livros quando dentro deles há poemas cujo desalinho valer-me-á sempre mais que um qualquer arranjo formal com pretensões “crítico-literárias”. E neste livro há muitos desses poemas, dos quais o melhor de todos é, sem dúvida, um poema intitulado Na Morte da Avó. De um livro de poesia não posso esperar o mesmo que se espera da Constituição da República. Posso apenas esperar que insista «no escusado, mal pago, fantasioso / exercício da beleza» (p. 42). Se for isso que ele tem para me oferecer, e foi isso que Santo Subito me ofereceu, resta-me agradecer humildemente ao seu autor.

Escrito para o Rascunho.

2 comentários:

paulo da ponte disse...

"Irritam-me as cabeças penteadas e não espero da poesia senão uma forte e irregular ventania"
Partilho e aprecio mais esta perspectiva desconstrutivista do discurso poético. No entanto, alguma da poesia mais recente, que assenta no prosaismo como fundação tende a perder a chama. O tal "fogo que arde sem se ver" dissipa-se.
Os teus livros aqui foram apreciados e esperam-se novidades para despentear algumas cabeças ainda este ano.
O resto pode ficar organizado num qualquer compêndio de virtudes, que fica muito bem.
Abraço,
Pablo dela Puente

hmbf disse...

Olá Paulo. Obrigado pelo comentário. Um abraço também para ti.