quarta-feira, 10 de março de 2010

WARD N.º6



Ward nº 6, do russo Karen Shakhnazarov, baseia-se num conto de Anton Tchekov ─ motivo mais que suficiente para aguçar a curiosidade. Ainda por cima, é um excelente filme. Levou para casa o Prémio Especial do Júri do Fantasporto 2010, ao qual se deverá acrescentar a minha absoluta rendição. O cenário é um antigo mosteiro transformado, ao longo dos tempos, em asilo de loucos. Filmado num registo que alterna o documental com a pura ficção, Ward nº 6 começa precisamente por nos introduzir nesse processo de transformação do edifício. No entanto, a história que tem para nos contar é sobre o processo de transformação de um homem que trabalha dentro desse edifício: o doutor Ragin, director do hospício. Um homem inteligente, especulativo, com inclinações filosóficas, aberto a questões metafísicas, mas profundamente só. Isolado, sem ter com quem partilhar os seus interesses, enclausurado numa cidade amorfa repleta de gente desinteressante, óbvia, mesquinha, previsível e superficial, o doutor Ragin encontra num dos seus pacientes o parceiro de conversa ideal. Muito discutem, nomeadamente os fundamentos para a situação em que ambos se encontram. O que é a loucura? Com que direito alguns homens encarceram outros homens? Quem determina a insanidade de um ser? Porque não é a sociedade que se movimenta para lá das paredes daquele asilo, na sua artificial normalidade, mais demente do que os alienados ali enclausurados? Embrenhado num manto de dúvidas, o doutor Ragin entrega-se ao álcool, deixa-se tomar pela depressão, torna-se ele próprio uma ameaça ao pilar que fundamenta a convencional separação entre loucura e normalidade. Não é preciso ter lido Arno Gruen para perceber que o meio social é um vasto e legitimado hospício onde emergem, por variadíssimas razões e em diversificados contextos, pequenos vírus que os homens ditos normais tendem a considerar loucos. Em certas circunstâncias, os loucos são tomados por gente normal. Deixam de o ser quando ameaçam os muros da maioria, quando se tornam, eles próprios, uma ameaça, quando agridem e violentam as regras, as leis, as noções de dever e os direitos que servem de base à organização social, como uma superfície de areia muito fina que ao mais leve movimento pode ser desorganizada. Afinal, a normalidade é uma questão estatística. O doutor Ragin acabará por ser visto, aos olhos de um jovem e ambicioso doutor, como um desses elementos que pode pisar o risco, ou seja, a fina areia, deixando num estado caótico o que se pretende ordenado. A questão que somos levados a formular, já sobre a mudez de um homem outrora loquaz, é esta: o que nos leva à loucura? Recordo-me de um poema meu que começa assim: as pessoas saudáveis são todas desinteressantes. A retórica do argumento não pretende outra coisa senão chamar a atenção para os vícios da higienização, algo que, se quiserem, pode ser interpretado paralelamente aos perigos da normalização. Estes processos tendem a impedir a afirmação livre do ser, ofuscam-no, recalcam-no, adestram-no, porque temem a sua inconveniência. Pretendem integrar, desintegrando. Pouco mais podem sustentar do que um inconformismo conformado. O resto será interpretado como desvio. E para o desvio só resta uma solução: endireitar. Nada há mais impertinente numa sociedade que se pretende calafetada do que as pulsões do ser. Por isso foram os homens impelidos a conter o riso, por isso foram educados para o desprezo do corpo, por isso foram domesticados na sua natural bestialidade, crueldade, anarquia, por isso foram os homens chamados a odiar os amantes incondicionais, por isso foram reprimidos sempre que foram homens, ou seja, sempre que questionaram os métodos através dos quais se proíbe alguém de ser ele próprio. O inquestionável não existe. O silêncio fechado do doutor Ragin resulta da mais execrável violência que pode ser exercida sobre alguém cuja natureza é, precisamente, questionar. Neste caso, pode ser interpretado como uma violentação tirânica do ser. Não é outro o papel das sociedades higienizadas, tiranizar o ser a ponto de o reduzir a uma insustentável solidão. Agora pense o leitor no Portugal contemporâneo, assaltado recorrentemente por exemplos, ainda que mais ou menos residuais, de um puritanismo medievalesco. Depois de pensar, se se sentir só, pense duas vezes antes de ir ao médico.

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