quarta-feira, 14 de abril de 2010

A CRISE

Camarada Van Zeller, hoje venho a consulta sentimental. A minha mulher entusiasmou-se com o Farmville e agora quer investir numa quinta a sério. Já tentei explicar-lhe que as quintas a sério custam dinheiro e dão trabalho, mas ela não se convenceu. Só me pareceu renitente quando eu lhe lembrei que numa quinta a sério não pode ter elefantes. Aí sentia-a vacilar, sentia perder-se numa leve e efémera hesitação. Logo me respondeu com um rol de verdades para as quais não tenho réplica: que hei-de ser sempre um infeliz porque me conformo com o que tenho, que não sonho nem deixo os outros sonhar, que não faço nada por mim, limito-me a ler livros e a formular teorias inúteis sobre tudo e mais alguma coisa, incluindo a própria inutilidade das teorias. Andamos nisto há dias. Nisto da quinta, porque quanto ao resto andamos há vários anos. A minha mulher é uma pessoa persistente, mete uma coisa na cabeça e já ninguém a tira lá de dentro (eu sou uma dessas coisas). Uma vez tivemos uma discussão por causa de uma passadeira eléctrica. Ela pediu-me opinião sobre a possibilidade de comprarmos uma passadeira eléctrica para fazermos exercício físico. Eu disse-lhe que achava que não precisávamos de uma passadeira eléctrica para fazermos exercício físico. Bastava levantarmos o cu do sofá e darmos às pernas e aos braços alguma utilidade. Ela tinha metido na cabeça que com uma passadeira eléctrica a nossa vida desportiva seria diferente. Um dia, cheguei a casa, e lá estava o macambúzio no sótão, a barrar-me a passagem entre a aparelhagem de som e os CDs. Temo agora que um dia destes chegue a casa e tenha uma quinta à minha espera no sótão. Pergunto-lhe, camarada Van Zeller, como pode um homem que mal tem dinheiro para pagar o condomínio de um apartamento no Bairro dos Ciganos investir numa quinta? Bem sei que os meus pais têm uns terrenos lá na terra, mas aquilo precisa de muros e de terra lavrada, precisa de um tractor, de quem saiba distinguir sementes de frutos secos, aquilo precisa de alguém com garra e espírito e vontade e espírito de sacrifício. Ou seja, aquilo precisa de tudo menos de mim. Aquilo precisa de um chairman, aquilo precisa de um CEO. E depois há a crise. Em tempos de crise estamos obrigados a poupar. O que temos e o que não temos. Não é como a canalha que andou a gastar ao desbarato durante a Páscoa que passou. Li no jornal que este ano, entre a quinta-feira, dia 2, e Domingo de Páscoa, dia 5, foram feitas mais de 12 milhões de operações na rede Multibanco, entre compras e levantamentos, num total de 600 milhões de euros. Só pode ser da crise. Os portugueses andam deprimidos e investiram no chocolate. Sempre sai mais barato que os barbitúricos ou os narcóticos. Ou então andaram a comprar livros sobre a crise. Tenho reparado nas centenas de títulos que apareceram ultimamente com a crise por tema. Ele é como fazer o primeiro milhão, como poupar, como ficar mais rico, como esticar o salário. Eu passo a vida a esticar o meu, mas o elástico rompe-se sempre. Ainda assim, camarada Van Zeller, às vezes sinto-me tentado a concordar com os comunistas. O Carvalho da Silva diz que a conversa da crise é o maior roubo organizado da História. E já fez contas: «O dinheiro mobilizado pelos governos em menos de um ano para tapar buracos é 58 vezes o orçamento das Nações Unidas para o combate à pobreza». Não sei ao certo o real significado destas contas, mas como vou mudar de patrão começo a pensar se seguir mais uma vez os conselhos da minha mulher não será uma boa opção: comprar uma quinta e dedicar-me aos tomatais. Entretanto ela vendeu a passadeira eléctrica. Ficámos mais pobres e não menos gordos, mas pelo menos deixámos de discutir sobre a pertinência de uma passadeira eléctrica cá em casa.

10 comentários:

Luis Eme disse...

provavelmente o "camarada" Van Zeller vai dar-te força para te tornares agricultor, oferecendo-te ainda uma ficha de inscrição na estrutura "sindical" chamada CAP.

Unknown disse...

O Henrique está mesmo a merecer um lugar de assessor. Será que o camarada Van Zeller precisa de um?

hmbf disse...

O camarada Van Zeller é prodigioso. Não só está convencido de que o salário mínimo devia baixar, como julga que os vencimentos auferidos por Mexia e Cª são justíssimos. Há homens que nasceram para nos abismar.

Bluesy disse...

Estou ali com o Luís Eme: és jovem? Tens fazendas? Aprecias tomatais? E gasóleo agrícola com o qual podes enriquecer? Ajunta-te a nós. Na minha terrinha há ene histórias destas...

Ana Alexandre disse...

Esta serie é muito boa.
Queria só fazer uma pequena correcção: foi uma passadeira elíptica e daquelas muito grandes. Efectivamente, não foi um sucesso lá em casa: -0)
No que diz respeito à quinta, cada vez me convenço mais que o regresso ao campo é quase uma inevitabilidade. Será que não seriamos mais felizes a plantar e cultivar os nossos próprios alimentos? Viva a agricultura de subsistência.
Ana Alexandre

ruialme disse...

Eu cá concordo com Van Zeller no q toca ao ordenado de Mexia. Acho é q é injustíssimo q o ordenado mínimo não seja igual ou superior ao q Mexia ganha.
Ana, por falar em campo, ainda há poucos minutos comi uma mancheia de nêsperas q fui vendo, de há umas semanas para cá, mudar de cor até ao amarelo alaranjado correspondente ao sabor delicioso q têm.

hmbf disse...

Bluesy, eu é mais Nespresso. A terra a quem a trabalha. Não hei-de ser eu. :-)

Ana, tanta discussão para eu nem sequer saber distinguir uma passadeira eléctrica de uma passadeira elíptica. :-)

Rui, talvez o Mexia saiba distinguir as elipses da electricidade. :-)

Mário Galego disse...

ó pá...telefona ao mexia a dizer que a tua quinta foi vítima do mau tempo do oeste. um agricultor tem que saber mexer nos tomates...;)

Ana Alexandre disse...

Opá...até eu me enganei. Vi o teu comentário e ri-me por escreveres "passadeira elíptica". Fui ver o meu comentário e...
até eu me enganei, era uma bicicleta elíptica. lolllll

hmbf disse...

é da crise