terça-feira, 13 de abril de 2010

OBSESSÃO

Numa altura em que têm vindo a lume centenas de casos de pedofilia perpetrados sob os telhados de vidro da Santa Madre Igreja, era mais que previsível um certo coro de vozes a pretender associar esses casos ao celibato a que estão obrigados, pelo que há de humano nas ordens divinas, todos os padres. Durante muito tempo associada à homossexualidade, a pedofilia tem vindo a ser paulatinamente desmascarada por vítimas cujos relatos nos impedem de estabelecer relações de causa-efeito entre celibato ou homossexualidade e o desvio sexual que transforma em objecto de desejo a fragilidade dos indefesos. Trazer à colação este tipo de associações apenas ilude o verdadeiro problema, nomeadamente enquanto se insistir no provimento dos preconceitos e dos estereótipos desinvestindo na educação e numa justiça sem filhos nem enteados. No seu mais recente livro, José António Almeida (n. 1959) colige poemas que nos remetem para uma estigmatização da homossexualidade que alguns tenderão a considerar inexistente, mas que, tal como a estupidez humana, perdura viva, saudável e sem modos de se ver extinta. Num desses poemas, intitulado Recapitulando, lá está a palavra “pedófilo” pintada nas paredes de uma casa situada numa vila da província portuguesa. É destes estigmas, destas cicatrizes, que o livro Obsessão (&etc., Janeiro de 2010) trata.

Longe do mainstream literário português, que supomos situar-se entre os romances de José Rodrigues dos Santos e as coisas que Margarida Rebelo Pinto escreve, José António Almeida vem publicando os seus livros com assinalável descrição. A estreia deu-se em 1984, com uma edição de autor intitulada António Nogueira. Não li. Mas li O Rei de Sodoma e Algumas Palavras em Sua Homenagem, publicado na colecção Forma, da Presença, nove anos após o primeiro livro. Foi preciso mais um interregno de quinze anos para que o poeta voltasse a publicar, desta feita com outra regularidade e dividindo-se pelos versos e pela prosa: A Mãe de Todas as Histórias (Averno, 2008), A Vida de Horácio (&etc., 2008) e O Casamento Sempre Foi Gay e Nunca Triste (&etc., 2009). O mais recente conjunto de poemas persiste na temática homossexual, quer em contexto erótico, quer num contexto interventivo que aproxima muitos destes textos da chamada “poesia política”. Reconheço que o conceito possa não ser o mais adequado, mas socorro-me dele sob o pretexto de simplificar o que julgo ser uma atitude de denúncia de um tempo e de um espaço irremediavelmente marcados pela tacanhez de espírito. Denúncia e testemunho fundem-se em três sequências de poemas que, numa nota inicial, o autor diz formarem «uma unidade de tessitura dramática mais ou menos óbvia».

Temos, portanto, um espaço e um tempo claramente delimitados: uma vila da província no sul de Portugal, nos anos 2005, 2006. A obsessão pelo corpo amado vai dando lugar a um ambiente de traição, de intriga, de coscuvilhice, um ambiente pautado pela mesquinhez das víboras que transformaram em ruína um amor agora rememorado. Seja quando evocam um relato «na sala do comandante do posto / da Guarda Nacional Republicana» (p. 22), seja quando lembram um assalto em que «essa vida que tinha as dimensões // do universo, contrai-se de súbito, / fica reduzida ao tamanho de // ponta de alfinete, gume de faca» (pp. 54-55), o que sustenta estes poemas é a memória, mais ainda quando neles vislumbramos aquele desejo de ver passar sobre as experiências traumáticas a ineficaz borracha do tempo: «Não, ninguém sabe, talvez / só o corvo que na torre // do relógio mora sempre, quantos dias são precisos // para esquecer uma noite» (p. 15). Escritos em estrofes cuidadosamente desenhadas, os poemas de José António Almeida revelam uma preocupação formal que contrasta com a informalidade do discurso, ainda que a linguagem empregada seja esteticamente depurada. Neste caso, o cuidado resulta numa acutilante denúncia da «fanfarrona estupidez da tribo» (p. 50) que habita a «mesquinha vila da província» (p. 56).

Não é necessário enveredar por um discurso ruinoso para denunciar a ruína, muito menos deixar a poesia ser assaltada pela podridão para tornar evidentes os podres do mundo. Empenhado na clarificação de um tempo, o poeta convoca a sua experiência pessoal enquanto fonte de uma narrativa que se pretende ao serviço de algo mais consolador e belo do que a dissimulada ignobilidade da maioria. Entre esses, pequenas flores germinam. As tais que convém descobrir e cultivar, como dizia Marco Polo ao grande Kublai Kan no termo d’As Cidades Invisíveis. No entanto, para tal é absolutamente necessário tornar clara a vulgaridade da patifaria, aprender a distinguir «a moeda falsa que faz o pedinte // desconfiar da mão de qualquer passeante» (p. 52) como quem aprende a distinguir cogumelos venenosos de cogumelos saudáveis. Talvez a poesia não seja a lição de que o mundo precisa. Porventura não será. Mas que vá ajudando a ultrapassar preconceitos e a combater estereótipos, já é suficientemente animador para que nos sintamos agradecidos por ainda haver quem nela procure o refúgio que oferece aos outros.

Escrito para o Rascunho.

2 comentários:

Anónimo disse...

Bom, Henrique Fialho, na sua opinião devo diluir-me no mainstream do que hoje se publica e se vende em Portugal, algures entre o JR dos Santos e a Margarida RPinto. Ainda assim - ria-se! - sou Rita Ferro, escritora (filha de António Quadros e não de Ferro Rodrigus), e venho dar-lhe os PARABÉNS pelo seu artigo, não só porque concordo inteiramente com ele, mas sobretudo porque fala de um amigo chegado e querido, e, mais do que isso, EXTRAORDINÁRIO Poeta - o José António. Abraço português, RF

(arcos.arcos@hotmail.com)

hmbf disse...

:-)

Ora então, muito obrigado.