domingo, 18 de abril de 2010

WINESBURG, OHIO

Após a edição de Pergunta ao Pó, de John Fante, as Edições Ahab voltam a investir num autor norte-americano menos conhecido do grande público. Sherwood Anderson (n. 1876 – m. 1941) nasceu em Camden, Ohio. As origens humildes obrigaram-no a trabalhar desde muito cedo. Aos 17 anos, mudou-se para Chicago. Menos dependente da família, conseguiu conciliar os estudos nocturnos com o trabalho diário num armazém. Completou o serviço militar combatendo em Cuba durante a Guerra Hispano-Americana, regressando posteriormente ao Ohio para se casar, zangar-se com a mulher e mudar-se novamente para Chicago já com a intenção de se tornar escritor a tempo inteiro. Em Chicago, juntou-se a Carl Sandburg e Theodore Dreiser, divorciou-se e voltou a casar, desta feita com a ex-mulher do poeta Edgar Lee Masters. Dois romances iniciais, Windy McPherson’s Son (1916) e Marching Men (1917), não lhe garantiram qualquer sucesso. Só granjeou o reconhecimento dos seus pares ao terceiro livro, este Winesburg, Ohio que agora aparece vertido para português por José Lima. Seguiram-se prémios, viagens pela Europa, encontros com Gertrude Stein, mais divórcios e casamentos. Instalado em New Orleans, partilhou um apartamento com William Faulkner, tornando-se uma das principais influências do autor de Absalom! Absalom! e ajudando-o a publicar o primeiro romance.

Por muitos considerada a sua obra-prima, Winesburg, Ohio (1919) é um daqueles livros que, pela sua organização formal, questionam a essência do romance enquanto género literário. Não sendo propriamente uma colectânea de contos, também não se encaixa no género mais convencional da grande narrativa. Em boa verdade, trata-se de uma obra composta de histórias unidas por um mesmo espaço físico, por um tempo comum, embora com ligeiras e momentâneas derivações, e pelo cruzamento de personagens que ora aparecem, ora desaparecem, deixando atrás de si um rasto que permitirá ao leitor, no final do livro, fazer da dispersão os fundamentos de uma narrativa englobante e unívoca. São vinte e quatro os sketches coligidos pelo autor. À caracterização de uma pequena povoação da América profunda, junta-se uma reflexão sobre o sens de la vie sustentada nas perturbações que assaltam cada um dos seus habitantes. Estas personagens apenas serão compreensíveis na relação que estabelecem com o meio social onde estão inseridas. Sublinho, do artigo de John Updike publicado à laia de posfácio, o seguinte apontamento: «Apesar de Winesburg acumular elementos exteriores ─ ruas, lojas, personalidades locais ─ enquanto segue tacteante o seu caminho, o seu peso é uma essência espiritual, um certo gosto acidulado e doce da vida tal como ela decorre nas solitárias casas da América alumiadas à luz do candeeiro. Uma beleza atormentada vive no meio desta desolação domesticada; o desfile de Anderson de espectros anelantes constitui em suma uma petição democrática pelos falhados, os esquecidos, os encurralados» (p. 253).

Por outro lado, parece haver como que um esforço de entendimento da dimensão grotesca de cada uma das personalidades em evidência. Entra elas, destaca-se o jovem George Willard. Repórter do Winesburg Eagle, George é o elemento para onde convergem todas as situações. As pessoas aproximam-se dele e contam-lhe as suas histórias, elegem-no confidente, estabelecem com ele vínculos de simpatia, dão-lhe conselhos, assediam-no. Porém, George alimenta um único sonho: «deixar a sua terra para a grande aventura da vida» (p. 242). De resto, não é o único em Winesburg com os mesmos anseios. Outras personagens, mais ou menos dominadas pela solidão e pelo desespero, estabelecem com o meio social um sentimento de deslocação que as transforma numa espécie de fantasmas de carne e osso. São exemplo disso o Dr. Reefy, acumulando pensamentos em pequenos bocados de papel que depois deita fora, Elizabeth Willard, a mãe de George, casada por conveniência «com Tom Willard, um empregado do hotel do pai, porque ele estava à mão e queria casar na altura em que ela tomara a decisão de casar» (p. 219), ou Alice Hindman, invadida de tristeza e de abandono por não ser amada, correndo nua pela rua fora, debaixo de chuva, pensando entregar-se ao primeiro homem que lhe aparecesse pela frente.

Não por acaso, a primeira das histórias de Winesburg, Ohio intitula-se O Livro do Grotesco. É sobre um velho escritor que vê desfilar perante si, nas intermitências do sono, uma procissão de figuras grotescas. «Todos os homens e mulheres que o escritor tinha conhecido se tinham tornado grotescos» (p. 23). Talvez Sherwood Anderson pretendesse projectar um sentimento pessoal acerca da sua própria história. Em certos aspectos, George Willard assemelha-se a um possível alter-ego do autor. Ou talvez nada seja tão simples. O Livro do Grotesco é um livro sobre verdades. As verdades são bonitas, excepto quando as pessoas as tomam para si e passam a chamar-lhes a sua verdade. Esforçando-se por seguir a sua vida de acordo com essa verdade, as pessoas tornam-se grotescas e a verdade transforma-se numa mentira. Após a leitura de Winesburg, Ohio, a sensação que nos fica é a de termos sido expostos à verdade de cada uma das personalidades que motivam as histórias relatadas. E essa verdade é ao mesmo tempo aterradora e encorajadora: afinal, são poucas as personalidades de Winesburg, Ohio que lograram desbravar caminho para que a sua vida pudesse consumar-se. Ao contrário, parecem ter-se fechado numa redoma que apenas lhes permitiu ver a vida passar por elas. A grande dúvida é se em partir ou ficar não estará a vida presa a essa ilusão de que é preciso cortar laços para tomar nas próprias mãos as rédeas de um destino que, em qualquer das circunstâncias, acaba sempre por ser mais fruto dos acasos do que uma construção individual.


Escrito para o Rascunho.

5 comentários:

manuel a. domingos disse...

outro autor que muito influenciou Bukowski

hmbf disse...

Às tantas, ainda publicam um Bukowski. Como diz o povo, não há fome que não dê em fartura. :-)

Bluesy disse...

O Pergunta ao Pó desapareceu em dois dias da minha mesa de cabeceira. Já o Pudor e Dignidade demorou mais tempo.... Gosto da linha da Ahab e quer-me parecer que este também vai lá para casa.
Gosto mt destes teus textos.

hmbf disse...

Muito obrigado, Bluesy. Eu também gosto muito de os escrever.

jaa disse...

Também gostei muito dos três primeiros da Ahab. E o seu texto só vai ter uma consequência, hmbf: eu quebrar mais promessas. Por que diabo continuo a fazê-las?