O percurso que marca a afirmação de Paulo Kellerman (n. 1974) como um dos mais consistentes contistas portugueses começou com várias publicações caseiras que coligiam estórias mais ou menos absurdas, grotescas, irónicas. A primeira colectânea que a Deriva lhe publicou − Gastar Palavras (2005, Grande Prémio de Conto “Camilo Castelo Branco” C.M. de Vila Nova de Famalicão/ APE em 2006) – revelou-nos um autor com suficiente agilidade para, dentro de um mesmo registo narrativo, produzir inflexões nas temáticas predilectas e experimentar novos caminhos. Se é verdade que algumas das publicações caseiras já vinham anunciando um autor especialmente focalizado nas rotinas da vida a dois, menos verdade não será que essas rotinas foram sendo aprofundadas do ponto de vista reflexivo nos livros subsequentes: Os Mundos Separados que Partilhamos (2007) e Silêncios Entre Nós (2008). Nesses livros, erguidos a partir de diálogos informais com pinturas de diversos artistas, a vida a dois aparece retratada sob uma perspectiva existencial, refém da melancolia e da monotonia que o objecto observado imprime no observador. Não se nota em nenhuma dessas compilações um esforço de distanciamento que permitisse pensar as relações humanas neste mundo contemporâneo, que só dizemos civilizado por distracção, para lá da previsibilidade dos comportamentos mais facilmente detectáveis. O que se nota é uma revelação perspicaz da fractura que a encenação da vida conjugal civilizada estabelece entre a intimidade e a partilha.
Há nas personagens de Paulo Kellerman como que uma impossibilidade de comunicação que coloca os indivíduos numa redoma solitária sem solução aparente. Chega de Fado (Fevereiro de 2010) parece pretender desbravar esse caminho. Partindo de uma ligeira investigação etimológica, os nomes das personagens dão o mote às estórias. Dez estórias cujos títulos enunciam uma relação separada por um travessão fortemente simbólico. Assim, Paula / Miguel não são Paula e Miguel, duas entidades subsumidas na confusão das fusões, mas sim dois seres cuja relação está separada por um obstáculo indefinido. Pergunto-me se esse obstáculo não será a própria dificuldade que cada uma das personagens sente em revelar-se. Pergunto-me se essa dificuldade não advirá de um erro de princípio, o da presunção de uma intimidade que não existe senão em relação com o outro. Afinal, de que falamos quando falamos de mundo civilizado? Falamos, sobretudo, de uma educação para a maquilhagem, para o disfarce, de uma educação para a hipocrisia. O matrimónio, enquanto sustento das sociedades aparentemente monogâmicas, é só um dos disfarces mais hipócritas. Sujeitas a vidas miseráveis, as pessoas prometem-se até à morte umas às outras, ao mesmo tempo que em vida se vão afirmando individualmente através da traição encapotada. Dizem-nos que é pecado amar ao quadrado ou ao cubo, para que a nossa consciência moral nos afogue nas marés revoltosas do arrependimento. Matamos por ciúme, matamo-nos por ciúme, por termos o coração educado para a posse do outro, quando, afinal, o deveríamos antes ter educado para a nossa própria posse, para a nossa própria afirmação livre. Pecado deveria ser não amar o mais possível e obrigar o corpo à escravatura da exclusividade.
O desconforto que atravessa as personagens destas dez estórias é o da amargura sentida pelos que vivem diminutivamente. As palavras o indicam: «só um pouquinho» (pp. 8, 15, 25), «quando finalmente conquisto aquele pedacinho de liberdade» (p. 32), «basta estarmos um bocadinho tristes» (p. 33), «passa a haver aquele respeitinho muito agradável» (p. 34), «muito devagarinho» (p. 38), «esforço-me um bocadinho, só um bocadinho, percebe?, para não andar com peninha de mim» (p. 39), «impondo-se um bocadinho» (p. 42), «e acrescenta, baixinho» (p. 45), «talvez, um pedacinho, como se estivesse a invadir demasiado a sua privacidade» (p. 61)… O divórcio, a separação, aparece como a solução aparentemente mais libertadora para um amor que se tornou enfermo por nele ter deixado de haver paixão, por nele os comportamentos serem agora mais mecânicos do que humanos, por nele a imprevisibilidade, o acidente, a surpresa, o espanto, terem dado lugar à monotonia. Não será por acaso a estrutura dramática que caracteriza cada um dos contos, intercalando monólogos reflexivos com diálogos tipicamente teatrais. A encenação dos gestos, dos comportamentos, das expressões, reforça essa ideia de uma identidade perdida algures por detrás das máscaras que separam a vontade do pensamento e o pensamento da acção. O resultado fala por si:
«Nunca te contei, nunca falámos disto; mas a verdade é que durante o nosso abraço diário vou estudando e realizando uma espécie de inventário do teu cabelo. A verdade (suspeito que não gostarias de a conhecer ou, pelo menos, de a consciencializar, de a verbalizar; mas é, efectivamente, a realidade concreta e palpável, definitiva) é que todos os dias descubro um novo cabelo branco na tua cabeça.
Sim, todos os dias: um novo abraço, um novo cabelo branco; todos os dias: menos um dia.
Por vezes (como agora), sinto a tentação de te perguntar se não terás já reparado nesta evidência da passagem do tempo, da diminuição dos dias disponíveis; terás notado que envelheces? E por que motivo nunca falámos sobre isso? Gostava de te confessar, também, o meu receio mais aflitivo; confidenciar-te que temo o dia em que todos os teus cabelos estejam brancos; porque, quando isso acontecer, como poderei continuar a ter a percepção da passagem do tempo?»
Há nas personagens de Paulo Kellerman como que uma impossibilidade de comunicação que coloca os indivíduos numa redoma solitária sem solução aparente. Chega de Fado (Fevereiro de 2010) parece pretender desbravar esse caminho. Partindo de uma ligeira investigação etimológica, os nomes das personagens dão o mote às estórias. Dez estórias cujos títulos enunciam uma relação separada por um travessão fortemente simbólico. Assim, Paula / Miguel não são Paula e Miguel, duas entidades subsumidas na confusão das fusões, mas sim dois seres cuja relação está separada por um obstáculo indefinido. Pergunto-me se esse obstáculo não será a própria dificuldade que cada uma das personagens sente em revelar-se. Pergunto-me se essa dificuldade não advirá de um erro de princípio, o da presunção de uma intimidade que não existe senão em relação com o outro. Afinal, de que falamos quando falamos de mundo civilizado? Falamos, sobretudo, de uma educação para a maquilhagem, para o disfarce, de uma educação para a hipocrisia. O matrimónio, enquanto sustento das sociedades aparentemente monogâmicas, é só um dos disfarces mais hipócritas. Sujeitas a vidas miseráveis, as pessoas prometem-se até à morte umas às outras, ao mesmo tempo que em vida se vão afirmando individualmente através da traição encapotada. Dizem-nos que é pecado amar ao quadrado ou ao cubo, para que a nossa consciência moral nos afogue nas marés revoltosas do arrependimento. Matamos por ciúme, matamo-nos por ciúme, por termos o coração educado para a posse do outro, quando, afinal, o deveríamos antes ter educado para a nossa própria posse, para a nossa própria afirmação livre. Pecado deveria ser não amar o mais possível e obrigar o corpo à escravatura da exclusividade.
O desconforto que atravessa as personagens destas dez estórias é o da amargura sentida pelos que vivem diminutivamente. As palavras o indicam: «só um pouquinho» (pp. 8, 15, 25), «quando finalmente conquisto aquele pedacinho de liberdade» (p. 32), «basta estarmos um bocadinho tristes» (p. 33), «passa a haver aquele respeitinho muito agradável» (p. 34), «muito devagarinho» (p. 38), «esforço-me um bocadinho, só um bocadinho, percebe?, para não andar com peninha de mim» (p. 39), «impondo-se um bocadinho» (p. 42), «e acrescenta, baixinho» (p. 45), «talvez, um pedacinho, como se estivesse a invadir demasiado a sua privacidade» (p. 61)… O divórcio, a separação, aparece como a solução aparentemente mais libertadora para um amor que se tornou enfermo por nele ter deixado de haver paixão, por nele os comportamentos serem agora mais mecânicos do que humanos, por nele a imprevisibilidade, o acidente, a surpresa, o espanto, terem dado lugar à monotonia. Não será por acaso a estrutura dramática que caracteriza cada um dos contos, intercalando monólogos reflexivos com diálogos tipicamente teatrais. A encenação dos gestos, dos comportamentos, das expressões, reforça essa ideia de uma identidade perdida algures por detrás das máscaras que separam a vontade do pensamento e o pensamento da acção. O resultado fala por si:
«Nunca te contei, nunca falámos disto; mas a verdade é que durante o nosso abraço diário vou estudando e realizando uma espécie de inventário do teu cabelo. A verdade (suspeito que não gostarias de a conhecer ou, pelo menos, de a consciencializar, de a verbalizar; mas é, efectivamente, a realidade concreta e palpável, definitiva) é que todos os dias descubro um novo cabelo branco na tua cabeça.
Sim, todos os dias: um novo abraço, um novo cabelo branco; todos os dias: menos um dia.
Por vezes (como agora), sinto a tentação de te perguntar se não terás já reparado nesta evidência da passagem do tempo, da diminuição dos dias disponíveis; terás notado que envelheces? E por que motivo nunca falámos sobre isso? Gostava de te confessar, também, o meu receio mais aflitivo; confidenciar-te que temo o dia em que todos os teus cabelos estejam brancos; porque, quando isso acontecer, como poderei continuar a ter a percepção da passagem do tempo?»
Escrito para o Rascunho.
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