Em 1846, tinha eu dezassete anos de idade, fui admitido no conselho dos guerreiros. Fiquei muito feliz, porque já podia ir onde me apetecesse e fazer o que quisesse. Eu nunca estivera sob o controlo de nenhum indivíduo, mas os costumes da nossa tribo proibiam-me de partilhar das glórias da guerra até ser admitido pelo conselho. Depois disto, e quando a oportunidade se apresentasse, eu poderia ir para a guerra com a minha tribo. Seria glorioso. Eu ansiava por servir o meu povo em combate. Há muito que desejava combater ao lado dos nossos guerreiros.
Mas talvez o que me dava maior alegria era o facto de já poder casar com a bela Alope, filha de No-po-so. Era uma rapariga esguia e delicada, e há muito que éramos amantes. Assim, logo que o conselho me concedeu estes privilégios, fui falar com o seu pai sobre o casamento. Talvez o nosso amor não lhe interessasse, ou talvez quisesse conservar Alope consigo, porque ela era uma filha obediente. Fosse como fosse, pediu muitos póneis por ela. Não lhe respondi, e passados poucos dias apareci à frente do seu wigwam com a manada de póneis e levei Alope comigo. Na nossa tribo, não era necessária mais nenhuma cerimónia de casamento.
Não longe do tipi de minha mãe, eu construíra uma nova casa para nós. O tipi era feito de peles de búfalo, e lá dentro tinha muitas peles de urso e leão e outros troféus de caça, bem como as minhas lanças, arcos e flechas. Alope fizera muitos adornozinhos com contas e peles de veado desenhadas, e decorou o nosso tipi com eles. Também fez muitas pinturas nas paredes da nossa casa. Era uma boa esposa, mas nunca foi robusta. Seguíamos as tradições dos nossos pais, e éramos felizes. Tivemos três filhos ─ crianças que brincavam, mandriavam ou trabalhavam como eu fizera.
No Verão de 1858, quando estávamos em paz com as cidades mexicanas e todas as tribos índias vizinhas, fomos para sul, para o Velho México, para comerciar. Toda a tribo (Apaches Bedonkohe) passou por Sonora em direcção ao nosso destino, Casa Grande, mas antes de chegarmos a este lugar parámos noutra cidade mexicana, à qual os índios chamam «Kas-ki-yeh». Ali permanecemos vários dias, acampados fora da cidade. Íamos todos os dias à cidade para comerciar, deixando o nosso acampamento ao cuidado de uma pequena guarda que, enquanto estávamos ausentes, protegia as nossas armas, os mantimentos, as mulheres e as crianças.
Um dia, ao fim da tarde, quando regressávamos da cidade, vieram ao nosso encontro algumas mulheres e crianças que nos disseram que tropas mexicanas de outra cidade tinham atacado o acampamento, matando os guerreiros de guarda, capturando todos os póneis, apoderando-se das armas, destruindo os mantimentos e matando muitas das mulheres e crianças. Separámo-nos rapidamente e escondemo-nos o melhor que pudemos até ao cair da noite, altura em que nos reunimos num local pré-estabelecido ─ um matagal, junto ao rio. Regressámos silenciosamente ao acampamento, um de cada vez, e postámos sentinelas. Depois de contados os sobreviventes, descobri que a minha velha mãe, a minha jovem esposa e os meus três filhos estavam entre os mortos. Como não havia fogueiras no acampamento, afastei-me silenciosamente e fui para junto do rio. Não sei quanto tempo lá permaneci, mas quando vi os guerreiros preparando-se para um conselho, tomei o meu lugar.
Nessa noite, não votei contra nem a favor de nenhuma medida, mas chegou-se à conclusão de que não nos poderíamos sair vencedores de um combate: restavam apenas oitenta guerreiros, tínhamos ficado sem armas e mantimentos, e estávamos cercados pelos Mexicanos no interior do seu território. Assim, o nosso chefe, Mangus-Colorado, deu ordens para partirmos imediatamente e no mais absoluto silêncio para as nossas terras do Arizona, deixando os mortos no terreno.
Ali fiquei, de pé, enquanto todos dispersavam, sem saber o que fazer ─ não tinha armas nem queria lutar, e também não pensava em recuperar os cadáveres dos meus entes queridos, porque era proibido. Não rezei nem decidi fazer nada em particular, pois já nada fazia sentido para mim. Por fim, segui silenciosamente a tribo, mantendo-me apenas à distância suficiente para ouvir o arrastar dos pés dos Apaches em retirada.
Na manhã seguinte, alguns índios caçaram uma pequena quantidade de presas, e nós parámos o tempo suficiente para a tribo cozinhar e comer, e depois retomámos a marcha. Como eu não tinha caçado, não comi. Durante a primeira marcha e enquanto estivemos acampados neste lugar, não falei com ninguém nem ninguém falou comigo ─ nada havia a dizer.
Durante dois dias e três noites fizemos marchas forçadas, parando apenas para as refeições. Depois, acampámos perto da fronteira mexicana, onde descansámos dois dias. Foi aqui que ingeri alguns alimentos e falei com os outros índios que tinham perdido entes queridos no massacre, mas ninguém perdera tanto como eu, porque eu tinha perdido tudo.
Passados alguns dias, chegámos à nossa aldeia. Lá estavam as decorações que Alope fizera ─ e os brinquedos dos nossos pequenitos. Queimei tudo, incluindo o tipi. Também incendiei o tipi de minha mãe, e destruí todos os seus haveres.
Nunca mais fui feliz na nossa tranquila aldeia. É verdade que podia visitar a sepultura de meu pai, mas eu jurara vingança contra os Mexicanos que me tinham injustiçado, e sempre que me aproximava do seu túmulo ou via algo que me fazia recordar os antigos dias de felicidade, o meu coração ansiava por vingança contra o México.
Geronimo, in Geronimo e os Apaches ─ Autobiografia do Último Chefe Índio, trad. Miguel Mata, estudo introdutório de António N. Marcos Andrade, Edições Sílabo, 2005, pp. 66-72.
Mas talvez o que me dava maior alegria era o facto de já poder casar com a bela Alope, filha de No-po-so. Era uma rapariga esguia e delicada, e há muito que éramos amantes. Assim, logo que o conselho me concedeu estes privilégios, fui falar com o seu pai sobre o casamento. Talvez o nosso amor não lhe interessasse, ou talvez quisesse conservar Alope consigo, porque ela era uma filha obediente. Fosse como fosse, pediu muitos póneis por ela. Não lhe respondi, e passados poucos dias apareci à frente do seu wigwam com a manada de póneis e levei Alope comigo. Na nossa tribo, não era necessária mais nenhuma cerimónia de casamento.
Não longe do tipi de minha mãe, eu construíra uma nova casa para nós. O tipi era feito de peles de búfalo, e lá dentro tinha muitas peles de urso e leão e outros troféus de caça, bem como as minhas lanças, arcos e flechas. Alope fizera muitos adornozinhos com contas e peles de veado desenhadas, e decorou o nosso tipi com eles. Também fez muitas pinturas nas paredes da nossa casa. Era uma boa esposa, mas nunca foi robusta. Seguíamos as tradições dos nossos pais, e éramos felizes. Tivemos três filhos ─ crianças que brincavam, mandriavam ou trabalhavam como eu fizera.
No Verão de 1858, quando estávamos em paz com as cidades mexicanas e todas as tribos índias vizinhas, fomos para sul, para o Velho México, para comerciar. Toda a tribo (Apaches Bedonkohe) passou por Sonora em direcção ao nosso destino, Casa Grande, mas antes de chegarmos a este lugar parámos noutra cidade mexicana, à qual os índios chamam «Kas-ki-yeh». Ali permanecemos vários dias, acampados fora da cidade. Íamos todos os dias à cidade para comerciar, deixando o nosso acampamento ao cuidado de uma pequena guarda que, enquanto estávamos ausentes, protegia as nossas armas, os mantimentos, as mulheres e as crianças.
Um dia, ao fim da tarde, quando regressávamos da cidade, vieram ao nosso encontro algumas mulheres e crianças que nos disseram que tropas mexicanas de outra cidade tinham atacado o acampamento, matando os guerreiros de guarda, capturando todos os póneis, apoderando-se das armas, destruindo os mantimentos e matando muitas das mulheres e crianças. Separámo-nos rapidamente e escondemo-nos o melhor que pudemos até ao cair da noite, altura em que nos reunimos num local pré-estabelecido ─ um matagal, junto ao rio. Regressámos silenciosamente ao acampamento, um de cada vez, e postámos sentinelas. Depois de contados os sobreviventes, descobri que a minha velha mãe, a minha jovem esposa e os meus três filhos estavam entre os mortos. Como não havia fogueiras no acampamento, afastei-me silenciosamente e fui para junto do rio. Não sei quanto tempo lá permaneci, mas quando vi os guerreiros preparando-se para um conselho, tomei o meu lugar.
Nessa noite, não votei contra nem a favor de nenhuma medida, mas chegou-se à conclusão de que não nos poderíamos sair vencedores de um combate: restavam apenas oitenta guerreiros, tínhamos ficado sem armas e mantimentos, e estávamos cercados pelos Mexicanos no interior do seu território. Assim, o nosso chefe, Mangus-Colorado, deu ordens para partirmos imediatamente e no mais absoluto silêncio para as nossas terras do Arizona, deixando os mortos no terreno.
Ali fiquei, de pé, enquanto todos dispersavam, sem saber o que fazer ─ não tinha armas nem queria lutar, e também não pensava em recuperar os cadáveres dos meus entes queridos, porque era proibido. Não rezei nem decidi fazer nada em particular, pois já nada fazia sentido para mim. Por fim, segui silenciosamente a tribo, mantendo-me apenas à distância suficiente para ouvir o arrastar dos pés dos Apaches em retirada.
Na manhã seguinte, alguns índios caçaram uma pequena quantidade de presas, e nós parámos o tempo suficiente para a tribo cozinhar e comer, e depois retomámos a marcha. Como eu não tinha caçado, não comi. Durante a primeira marcha e enquanto estivemos acampados neste lugar, não falei com ninguém nem ninguém falou comigo ─ nada havia a dizer.
Durante dois dias e três noites fizemos marchas forçadas, parando apenas para as refeições. Depois, acampámos perto da fronteira mexicana, onde descansámos dois dias. Foi aqui que ingeri alguns alimentos e falei com os outros índios que tinham perdido entes queridos no massacre, mas ninguém perdera tanto como eu, porque eu tinha perdido tudo.
Passados alguns dias, chegámos à nossa aldeia. Lá estavam as decorações que Alope fizera ─ e os brinquedos dos nossos pequenitos. Queimei tudo, incluindo o tipi. Também incendiei o tipi de minha mãe, e destruí todos os seus haveres.
Nunca mais fui feliz na nossa tranquila aldeia. É verdade que podia visitar a sepultura de meu pai, mas eu jurara vingança contra os Mexicanos que me tinham injustiçado, e sempre que me aproximava do seu túmulo ou via algo que me fazia recordar os antigos dias de felicidade, o meu coração ansiava por vingança contra o México.
Geronimo, in Geronimo e os Apaches ─ Autobiografia do Último Chefe Índio, trad. Miguel Mata, estudo introdutório de António N. Marcos Andrade, Edições Sílabo, 2005, pp. 66-72.
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