Aquilo que nos querem ensinar as formas e as vozes índias: elas têm algo a dizer-nos, e deveríamos escutá-las. Querem mostrar-nos qualquer coisa, assim, simplesmente, sendo elas próprias, sem desejo de convencer ou de conquistar. Querem dizer-nos qualquer coisa, e bem faríamos ouvindo-as.
Pintura viva, pintura do pensamento sobre a pele, sinais alfabéticos que libertam o homem das sujeições e dos medos, que proclamam o reino da universal inteligência. Pintura da consciência. Música sem música, vozes que cantam para atravessar o tecto do mistério, para unir o homem aos outros homens que são os objectos, as plantas e os animais. Desenhos, vozes, gritos de flauta da matéria, e deixa de haver estrangeiro, estranho.
Beleza viva, beleza que existe por si mesma, sem ter de ser reconhecida, exibida, vendida; chega, natural, semelhante à linguagem, da profundidade maior do tempo, sem que seja preciso mudar-lhe um só fragmento. Depois, do outro lado do tempo vai, no centro do próprio porvir, inalterável beleza que é a única liberdade humana.
Basta de arte, basta de expressões individuais! Mas sim: estar unidos, e em conjunto saber ler.
As proezas da ciência, as proezas da linguagem, as proezas dos conquistadores: tudo sem dúvida falsas vitórias, visto não saberem senão subjugar os que as realizam. Os heróis não triunfam, são vítimas das suas próprias palavras.
Mas os que não são heróis, os Índios: vivem, assim, cada qual em seu lado, não inventam nada. Não querem conquistar o mundo, não pretendem persuadir as multidões. Não querem dominar com as suas palavras, com as suas vozes. Instintivamente, o homem índio elimina tudo o que o separe, tudo o que o pudesse tornar superior. Não lhe importa a análise, a história, a missão. Encontra-se de imediato no interior do mundo, no centro da vida. Não precisa seguramente de livros, nem de quadros ─ todo o homem é um livro, é um quadro. A perfeição, a lógica, as ideias novas, isso que é? O Índio leva na pele, à sua volta, nos signos quotidianos, a expressão da beleza, a liberdade.
É isso o que dizem os Índios, e não queremos ouvi-los: TODA A GENTE É INTELIGENTE.
J. M. G. Le Clézio, in Índio Branco, trad. Júlio Henriques, Fenda, Março de 1989, pp. 121-124. Nota: coincidências inexplicáveis fazem com que este livro tenha sido publicado no mesmo ano em que li, pela primeira vez, O Papalagui. Há entre os dois livros um elo discursivo que não cabe aqui revelar, mas cabe dizer que passados todos estes anos voltei a sentir com a leitura de Índio Branco o mesmo que sentira ao ler O Papalagui, ou seja, a sensação de um encontro mágico que oferece, entre outros, o dom de afastar de nós o medo da solidão, até porque assim se prova que nunca está irremediavelmente só aquele que se julga ausente do mundo em que vai procurando sobreviver. Aos amigos: se o não tiverem já feito, comprem, leiam, sublinhem, procurem entender o Índio Branco. Imprescindível.
6 comentários:
imprescindivel, sem duvida.
adaptado por um dos melhores tradutores da praça,
julio henriques (ou terá sido a Alice Corinde?!).
ah, esse livrinho do júlio henriques (perdão, alice corinde) também é uma preciosidade. :-)
Devo ter lido O Papalagui mais ou menos pela mesma altura q tu. Às vezes dou por mim a pensar se não é (como imagino q as memórias de Geronimo, q ainda não li, também sejam) uma versão não ficcionada (e não fantasiada) da Utopia de Tomas Morus ou do Cândido de Voltaire.
Hmmmmm são livros muito diferentes. E a biografia de Geronimo está longe de ser idilíca. Ao contrário da Utopia, que propõe um mundo perfeito, ou o Cândido, que ironiza o mundo em que vivemos (falo em termos gerais), O Papalagui mostra-nos o nosso mundo pelos olhos de alguém de fora, Índio Branco mostra-nos o mundo de alguém de fora, não evitando comparações críticas com o nosso, e a biografia de Geronimo mostra-nos a "degradação" de um "povo" sujeito a sangrentos processos de aculturação. Isto dava pano para mangas, como é óbvio. Aliás, o estudo introdutório à biografia de Geronimo é claro: desenganem-se aqueles que imaginam que antes da chegada dos colonos os índios viviam em paz com a natureza. Onde há povo, há conflito. E mais não digo, que é para fazer valer futuros posts. :-)
Pois... eu antes de acabar de escrever "uma versão de", já sabia q não era a melhor expressão - por isso aquele "e não fantasiada". Devia antes ter dito q poderá ser um contributo para a correcção dessas visões idílicas (ainda q para efeitos irónicos) do exotismo dos "selvagens" ou "primitivos".
O meu ponto de associação tem mais a ver com o confronto entre modos de vida.
Nessa linha, estão também o Noa Noa de Gauguin ou as obras de Victor Segalen.
Seja como for, são todos eles livros diferentes. Quanto às versões idílicas, elas só são problema dos idílicos. O que há a retirar disto tudo é o exemplo e a forma como cada um pode construir a sua vida em diálogo com a diversidade sem ter de se subjugar ou tentar impor o que e a o que quer que seja. Os modos de vida são tão circunstanciais quanto opcionais: podemos optar por viver de uma ou de outra forma, adaptar desta ou daquela cultura o que mais nos convier, podemos recusar ser assim ou assado e até podemos optar por seguir indiferentemente ao mundo que nos rodeia, podemos fechar os olhos e convencermo-nos de que nada mais existe senão o nosso umbigo, podemos procurar ser felizes cultivando a infelicidade, podemos praticar o onanismo e fazer disse regra universal, assim como podemos ser cínicos, hedonistas, hipócritas, podemos julgar que somos mais livres que os outros ou meras marionetas manipuladas por deus, pela natureza, pelos genes, pelo que quer que seja. Podemos tudo isso sob uma única certeza: mais tarde ou mais cedo, esta vidinha que agora vivemos vai-se. Para onde ou para o quê é indiferente. Simplesmente há-de ir-se. :-)
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