quinta-feira, 10 de junho de 2010

MULHER AO MAR

Após um interregno de vários anos, sempre mais que os desejáveis, a Mariposa Azual regressou à actividade editorial com livros novos de Paulo Condessa, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Miguel-Manso (uma reedição) e, entre outros, este Mulher ao Mar (Abril de 2010). O nome de Margarida Vale de Gato será certamente mais familiar aos leitores de poesia pelas traduções dos Poemas de Oscar Wilde (Relógio D’Água), da Obra Poética Completa de Edgar Allan Poe (Tinta-da-China), d’As Aventuras de Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho (Relógio D’Água), de Lewis Carroll, ou de um excelente livro, com o qual, aliás, a poesia de Margarida Vale de Gato mantém algumas afinidades, como o é Satanás Diz (Antígona), de Sharon Olds. No entanto, os menos distraídos, entre os quais, se me dão licença, me faço incluir, não terão sido completamente surpreendidos com a edição do primeiro volume de poemas da autora.

Poemas como Mulher ao Mar, Intercidades, Do consumo do desejo, Aniversário ou Émulos, já haviam sido anteriormente editados em revistas, antologias ou publicações colectivas. Destaco uma publicação de 1995, simplesmente intitulada Dez, onde se reuniram autores que tinham «dado os primeiros passos literários no DN Jovem, suplemento do Diário de Notícias. Entre eles, encontramos nomes como os de José Mário Silva, Pedro Mexia ou Joaquim Cardoso Dias. Não cometerei nenhuma inconfidência se chamar igualmente a atenção do leitor para os poemas que foram sendo publicados no weblog «d'ama», muitos deles agora transportados das páginas digitais para o papel. Pelo que foi dito, fica claro que Mulher ao Mar é uma compilação de poemas que foram sendo paridos em circunstâncias e tempos diversos.

Que os soldados da uniformidade não façam má cara a tais factos. Na heterogeneidade pode haver muita homogeneidade, e se há coisa que une os poemas deste livro é, precisamente, uma linguagem apurada pelo tempo (outros chamar-lhe-ão maturidade). Torna-se inclusivamente curiosa a constatação de que o hiato temporal que separa um poema como Intercidades (inicialmente publicado em Dez, 1995) e Mulher ao Mar (que li, pela primeira vez, no n.º1 da revista Sulscrito, editado no Verão de 2007) não cria entre os dois textos um qualquer conflito, digamos assim, estilístico. E se há marca que pode, de facto, distanciar esta poesia de outras que têm vindo a lume é o esforço e a disciplina que os poemas fazem transparecer ao nível da sua construção sintáctica.

A experimentação exercida sobre formas poéticas mais clássicas, aliada a uma linguagem que nos transporta, por vezes, para tempos antigos, muito por culpa de jogos rítmicos que vão buscar aos vocábulos dimensões fonéticas perdidas, pode criar no leitor mais arreigado ao prosaísmo reinante um certo desconforto. Note-se, a título de exemplo, como no excelente soneto intitulado Cat People modernidade e um certo maneirismo classicista se equilibram sem mácula: «Curiosa a tribo que formamos, sós / que somos sempre e à noite pardos, / fuzis os olhos, garras como dardos, / mostrando o nosso assanho mais feroz: // quando me ataca o cio eu toda ardo, e pelos becos faço eco, a voz / esforço, estico e, como outras de nós, / de susto dobro e fico um leopardo // ou ando nas piscinas a rondar ─ / e perco o pé com ganas sufocantes / de regressar ao sítio que deixei // julgando ser mais fundo do que antes. / A isto assiste a morte, sem contar / as vidas que levei ou já gastei» (p. 10).

Se de um ponto de vista formal a convencionalidade surge enfraquecida pela experimentação, do ponto de vista temático há como que dois pilares fundamentais sobre os quais se erguem os poemas deste livro: a chamada condição feminina e uma lírica amorosa sem redes de abstrusa sentimentalidade. Repetindo-se por diversas vezes o substantivo amor ou o verbo amar, o que fica, no final, é a sensação de uma espécie de sacrifício da própria lírica amorosa, esgotada sob o credo das relações falhadas, desfeitas, encaradas agora com uma ironia distante ou recordadas com um erotismo cuja sensualidade reside mais na força com que se «manda às urtigas» a ilusão e o encantamento das relações do que noutra coisa qualquer.

É verdade que, a espaços, uma certa nostalgia parece intrometer-se nos versos, nomeadamente a nostalgia da presença, mas o que resulta evidente é a catástrofe da Vida em Comum: «dias úteis cercados / por relógios, fadiga, esquecimento» (p. 24). Não admira, pois, que Emily Dickinson, Christina Rossetti, Sylvia Plath, Virginia Woolf, Frida Kahlo, Anna Karenina sejam chamadas à liça, sem dó nem piedade. No entanto, enquanto lia este livro, foi a poesia de Sharon Olds que mais me veio à memória, não tanto pela sexualidade explícita que escapa aos poemas de Mulher ao Mar, mas mais pelo sentimento de deriva e de naufrágio que o título de Margarida Vale de Gato indicia e a poesia de Olds resolve com extrema violência. Poemas como Ressabiadas, Talvez a injecção letal ou até o mais feminino de todos estes poemas, Do teu Nascimento ─ mais feminino porque seria impossível a um homem escrevê-lo ─, remeteram-me para essa «guerra de arco em riste» (p. 49) que ainda continua a ser a das mulheres à entrada deste século XXI.

Escrito para o Rascunho.

4 comentários:

Marta disse...

"...mais feminino porque seria impossível a um homem escrevê-lo...": pode a escrita ser feminina ou masculina?

hmbf disse...

já escrevi sobre isso, não me vou repetir. a frase que cita é óbvia, basta ler o poema para percebê-lo,

Marta disse...

Não tive a oportunidade de ler o que escreveu antes sobre este assunto. No entanto, a resposta ao meu comentário parece-me bastante esclarecedora da sua opinião. Confesso que sinto algum desconforto perante a (im)possibilidade de se escrever algo por se ser homem ou mulher, como se o sexo nos confinasse a uma determinada escrita. Talvez haja essa distinção quando o poema resulta de um intencional escrever “como um homem” ou “como uma mulher”, mas isso não torna a poesia numa espécie de papel químico do que se “sente”? Ou do que se finge sentir? Veja-se o caso das cantigas de amigo: homens que escrevem como mulheres que amam...
Apreciei bastante este seu texto, bem como outros tantos que aqui vai publicando.

hmbf disse...

Marta, o que escrevi sobre o assunto está num livro intitulado "O Meu Cinzeiro Azul". Muito basicamente, digo aí que a escrita não tem sexo. No entanto, a escrita faz-se de experiências. A experiência do parto, do parto ele mesmo, a experiência de parir alguém, é exclusivamente feminina. Esse poema da Margarida é precisamente sobre isso. Daí que só uma mulher o pudesse escrever. Quando as minhas filhas nasceram, também escrevi uns versos sobre o assunto. Uns versos, digamos, com desnecessário epidural.