sábado, 14 de agosto de 2010

ACAMPAMENTO ÍNDIO




O dia seguinte é sempre o mais difícil, anuncia-nos o fim e aponta-nos o regresso. Nos últimos dias, as marés mudaram, a meteorologia ficou instável. As alterações atmosféricas produzem os seus efeitos. Deixo-me embalar pela vagabundagem de Andreas Tangen (ou será fulano de tal?) e ocupo o meu pensamento com coisas insignificantes. Comi a Fome enquanto o diabo esfrega um olho. Não esperava mais que o oferecido, o que não foi pouco. Li um conto excelente de Luigi Pirandello. O Signor Pardi enviuvou, caiu numa espécie de modorra, a perda deixou-o desorientado, órfão, confunde os dias com as noites, mergulhou no vazio: «He felt torpid, perplexed, with a sensation of emptiness inside and all around him». Diz a si próprio que a vida continua, é o que dizem sempre aqueles que ficam mediante o afastamento dos outros. Perante as partidas, as perdas, as ausências, nenhuma outra resposta parece sensata, apenas esta constatação conformada e conformista de que a vida continua. O que fazer?

O vento arrastou-me para a Samoqueira. Um brevíssimo passeio a pé na companhia da Maria João, da Sara e do Tomás. Não desci, como outrora, por temer a agressividade das vagas. Antes provei as camarinhas. No dia anterior, a prole tinha-se aventurado por Odeceixe. Quem chega e olha para o areal coberto de chapéus-de-sol pode ficar assustado, mas toda a vastidão guarda os seus recantos. É preciso descobri-los. Chegados ao areal, caminhámos o mais possível para sul. A maré está cheia, mas ainda permite atravessar para o lado das Adegas. Entre Odeceixe e as Adegas, uns metros quadrados de areia para improvisarmos o nosso acampamento índio. Não sou de construir castelos na areia, prefiro acampamentos índios. E por ali ficamos, observando a paisagem, aguardando o momento de baixar os calções e ir à água como viemos ao mundo. Tenho para mim esta teoria de que na praia devíamos andar todos nus. E que as mulheres jamais deveriam poder desatar os “sutiãs” deixando-os estrategicamente dobrados sobre as auréolas mamilares.

À noite, enquanto reflectia o assunto, fui visitado por um sapo enorme. Tão grande que era capaz de se alimentar à base de escaravelhos americanos. Fotografámos o sapo na esperança de lhe virmos a descobrir figuras de príncipes no espelho dos olhos. Parecia assustado, o bicho, ou perdido, tal como eu fico sempre que o vento ameaça os toldos, a maresia enregela os dedos, os olhos estendem-se contemplativamente para lá do horizonte. Sempre visitámos o Sargo, o do Bilal, mas não íamos com comezainas intenções. Demos corda à conversa, que se prolongou em grupo num jantar à mesa do Chill Out e, de sobremesa, no quintal da Esteveira. Os dias estão mais curtos, soltam-se-nos suspiros da boca, há um silêncio denunciativo em cada gesto, estamos à beira do fim. Restam fotografias, textos, memórias, desenhos e mais algumas páginas no negro caderno terapêutico:

gosto de encher a boca com ar puro, de olhar o que se esconde atrás das rochas, de ouvir as conversas dos velhos na esplanada do café, de mulheres deitadas na areia, gosto de observar as pessoas na praia, de vê-las descendo carregadas de óleos imprescindíveis, mirando o areal de ponta a ponta em busca de alguns metros de distância, de um certo recolhimento onde possa a toalha ser estendida, gosto de me abrigar das pessoas, de abrir um livro e de te desenhar de memória, gosto de escrever na areia versos que o vento confundirá e o mar rasurará, gosto de sentir as pessoas momentaneamente indiferentes aos terrores do mundo, de saber que não pensam em mim, que me desconhecem e ignoram, de lhes descobrir o olhar nos pontos inalcançáveis do desejo. para onde olharão elas quando olham sem distância? esperarão elas, como eu, que a maré lhes devolva os sonhos, algo surpreendente? o mar vai e vem, nada traz, apenas detritos, mais areia, peixes mortos. se tivermos sorte, boas ondas e uma estrela do mar. por isso, gosto dos objectos na praia, das plantas semeadas no quintal, dos vasos com ervas aromáticas, daquele casal que se sentou à sombra, do meu pé sobre as águas douradas deste infindo mar. e gosto de me sentar sozinho numa rocha, enterrar os pés na areia, sentir a maré subir enquanto avanço mais algumas páginas num livro. gosto de escutar a rebentação das ondas, as gaivotas agitadas em torno de um cardume, gosto de olhar para o nada enquanto o sol me queima a pele e nada me arrefece o coração, a não ser, talvez, a memória do que fica por fazer enquanto me sinto ínfimo, tal qual sou, neste inventário de gostar. é simples: não gosto especialmente das noites quentes, mas agrada-me estar no silêncio da rua jogando a sorte num bafo de vento que me refresque o rosto. gosto de sentir a brisa ligeira, uma baforada meiga, aquietar-me as faces durante as horas tórridas de uma noite de Verão, uma noite que chama os insectos para junto dos corpos suados. gosto das vacas apascentadas, das ruínas, dos prédios devolutos e das casas abandonadas. gosto de sentir o silêncio que as ocupa e de imaginar o ruído que outrora as habitou. gosto do bolo de batata doce do António José Simões, embora prefira o da amêndoa a acompanhar-me o café.

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