segunda-feira, 23 de agosto de 2010

ANTICRISTO



As obsessões não se materializam, excepto artisticamente. Neste caso, cinematograficamente. Lars von Trier tem uma obsessão com as mulheres (já agora, remeto os leitores para este post). Anticristo, dedicado ao mestre Tarkovsky, é o filme onde essa obsessão aparece materializada de um modo mais explícito. Paradoxalmente, é um dos mais poéticos e abstractos dos seus filmes (compreende-se a dedicatória), sobretudo porque faz, ao nível da imagem, uma espécie de radiografia nublada da natureza feminina. Como é óbvio, é o olhar de um homem que aqui prevalece, embora a actriz escolhida para o efeito, Charlotte Gainsbourg, pelo naturalismo da sua representação, ofereça a esse olhar uma credibilidade assaz convincente.
Alternando entre uma dimensão onírica, onde os traumas e os pesadelos, toda a matéria do inconsciente, vêm à tona sob a forma de alucinação, alternando entre esta dimensão feérica e “fabulosa” com uma outra dimensão muito mais realista, von Trier encena a natureza feminina a partir de um pretexto patológico: a perda acidental de um filho enquanto os progenitores faziam amor. A situação do prólogo, já de si deveras traumática, embora narrativamente estimulante, por nela se fundirem os principais elementos da vida (sexo e morte), coloca-nos no centro de uma crise. Chuvas de bolotas, animais moribundos que se alimentam de si próprios, outros em decomposição que subitamente ganham vida, ou, numa das cenas mais marcantes do filme, uma ave recém-nascida a ser devorada por formigas que é subitamente rapinada para ser devorada pela ave que a rapinou, quiçá a sua progenitora, são elementos que conferem ao filme uma complexa dimensão simbolista. No entanto, a este barroquismo contrapõe-se uma estética violentíssima pela sua cruel naturalidade.

O que há de chocante neste filme não são as cenas de sexo explícito, demasiado breves e estetizadas, nem os momentos de violência extrema, entre os quais muito se falou das cenas de automutilação e da ejaculação de sangue, que acabam por estar filmadas até de um modo algo dissimulado. O que há de mais violento no filme é o jogo de agressão psicológica que atravessa todos os capítulos (luto, dor, desespero…), onde o sentimento de culpa, a desordem interior, a exposição do medo e a ansiedade, confluem num impiedoso processo terapêutico.
Se Cristo é um símbolo da capacidade de perdoar, neste caso o anticristo é a ausência de perdão que leva o agredido (o homem) a matar o agressor (a mulher). Portanto, a narrativa inscreve-se para lá do bem e do mal. O corpo feminino representado neste filme, uma mãe algo negligente, uma mulher paranóica que tenta escrever uma tese (Ginocidio) sobre o mal infligido às mulheres, acabando por estancar a reflexão no mal das mulheres, não deve ser interpretado como a causa do mal. Não há mal nem bem no Éden onde um homem e uma mulher se isolaram para tentarem tratar uma situação de ansiedade extrema. Há, antes, uma recusa do perdão enquanto solução para as fobias avassaladoras que tomam conta do ser. Declaradamente anti-edipiano, Lars von Trier mata a mãe neste filme. Ele tem um problema com as mulheres. E isso torna-se claro em mais um epílogo hilariante, à semelhança do que acontecia em Breaking the Waves, de tão auto-irónico que nos parece.

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