terça-feira, 17 de agosto de 2010

CARTAS DO POETA QUE DORME NUMA CADEIRA



I
Digo as coisas tal como são
Ou sabemos tudo de antemão
Ou nunca saberemos absolutamente nada.

Só nos é permitido
Aprender a falar correctamente.

II
Sonho com mulheres a noite toda
Umas riem-se ostensivamente de mim
Outras dão-me o golpe de coelho.
Não me deixam em paz.
Estão em guerra permanente comigo.

Levanto-me com cara de trovão.

Do que se deduz que estou louco
Ou pelo menos que estou morto de susto.

III
Dá muito trabalho crer
Num deus que deixa as suas criaturas
Abandonadas à sua própria sorte
À mercê das ondas da velhice
E das doenças
Para não falar da morte.

IV
Sou dos que saúdam as carroças.

V
Jovens
...........escrevam o que quiserem
No estilo que vos pareça melhor
Correu demasiado sangue debaixo das pontes
Para continuar a crer ─ creio eu
Que só se pode seguir um caminho:
Em poesia tudo é permitido.

VI
Doença
...........Decrepitude
...............................e Morte
Dançam como donzelas inocentes
Ao redor do lago dos cisnes
Seminuas
...............ébrias
Com seus lascivos lábios de coral.

VII
Está provado
Que não há habitantes na lua

Que as cadeiras são mesas
Que as borboletas são flores em perpétuo movimento
Que a verdade é um erro colectivo
Que o espírito morre com o corpo

Está provado
Que as rugas não são cicatrizes.

VIII
De cada vez que por um ou outro motivo
Tive que descer
Da minha pequena torre de tábuas
Regressei tremendo de frio
De saudade
..................de medo
..............................de dor.

IX
Já desapareceram os eléctricos
Cortaram as árvores
O horizonte vê-se cheio de cruzamentos.

Marx foi negado sete vezes
Todavia nós continuamos por aqui.

X
Alimentar abelhas com fel
Inocular o sémen pela boca
Ajoelhar-se num charco de sangue
Espirrar na capela ardente
Ordenhar uma vaca
E deitar-lhe o seu próprio leite pela cabeça.

XI
Das nuvens carregadas do pequeno-almoço
Aos trovões da hora do almoço
E daí aos relâmpagos da comida.

XII
Não me ponho triste facilmente
Para ser sincero
Até as caveiras me fazem rir.
Saúda-as com lágrimas de sangue
O poeta que dorme numa cruz.

XIII
O dever do poeta
Consiste em superar a página em branco
Duvidando que tal seja possível.

XIV
Só me conformo com a beleza
A fealdade produz-me dor.

XV
Última vez que repito o mesmo
Os vermes são deuses
As borboletas são flores em perpétuo movimento
Dentes cariados
..........................dentes quebradiços
Sou da tempo do cinema mudo.

Fornicar é um acto literário.

XVI
Aforismos chilenos:
Todas as cores têm manchas
O telefone sabe o que diz
Nunca a tartaruga perdeu mais tempo
Do que quando teve lições da águia.
O automóvel é uma cadeira de rodas.

E o viajante que olha para trás
Corre o sério risco
De a sua sombra não querer segui-lo.

XVII
Analisar é renunciar a si mesmo
Só se pode debater em círculo
Só se vê o que se quer ver
Um nascimento nada resolve
Reconheço que me caem as lágrimas.

Um nascimento nada resolve
Só a morte diz a verdade
Mesmo a poesia não convence.
Se nos ensina que o espaço não existe.

Se nos ensina que o tempo não existe
Mas de qualquer modo
A velhice é um facto consumado.

Seja o que a ciência quiser.

Dá-me sono ler as minhas poesias
E todavia foram escritas com sangue.


Nicanor Parra, in Otros poemas [1950-1968]
Versão de HMBF
(também na Di Versos n.º12, embora com algumas correcções)

2 comentários:

blimunda disse...

caraças, pá, qu'este gajo tira-me o fôlego...

hmbf disse...

Também gosto. :-)