sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O CRISTO DE ELQUI


A poesia de Nicanor Parra foi sempre fortemente contaminada pela actualidade. Hoje em dia, tendemos a classificar uma poesia deste tipo como sendo uma poesia da realidade, mas essas classificações enfermam de um preconceito acerca da realidade. Real é tudo o que se experiencia, tudo o que possa ser provado. A linguagem é real, a imaginação é real, os sonhos são reais, o ar que respiramos é real, o silêncio, na sua natural impossibilidade, não deixa de ser real. Ora, um poema que pretenda reproduzir a realidade onírica corre o risco de ser interpretado como fantasioso, abstracto ou surrealista quando, em boa verdade, está sendo o mais fiel possível ao objecto da sua observação. Não deixa de ser realista, ainda que o seu objecto seja menos concreto do que a situação política actual (a qual se nos afigura amiudadamente feérica e absurda).

Os antipoemas de Parra encaram a realidade como algo monstruoso, uma construção do olhar, relativizam a observação, renegam estereótipos, transcendem catalogações conservadoras, desmontam velhas dicotomias. O sentido de humor que os sustenta é o de um homem em conflito com as instituições. Em 1973, Nicanor aceitou um cargo no Instituto Pedagógico que foi rapidamente abandonado devido a pressões políticas. Continuou a viver da docência, primeiro de Física, depois de Poesia na Universidad de Chile. Os dois campos acabam por se cruzar numa poesia que assume uma atitude relativista e questiona velhas fórmulas da arquitectura poética. news from nowhere, conjunto de poemas visuais publicados em 1975 na revista Manuscritos, são um óptimo exemplo desse diálogo mantido entre a Física e a Poesia (ver imagem ao alto).

Em 1976, Parra tornou-se membro da Academia Chilena de la Lengua. Por essa altura, começou a trabalhar em dois dos seus livros mais significativos: Sermones y prédicas del Cristo de Elqui (1977) e Nuevos sermones y prédicas del Cristo de Elqui (1979). São livros-sequência marcados pela presença de um pregador chileno chamado Domingo Zárate Veja, o qual havia percorrido o Chile dos anos 30 espalhando a palavra de Deus. Nicanor Parra interpreta a acção do pregador como a de um franco-atirador, actividade por excelência do antipoeta, mas também cria com ele pontos de contacto através de uma postura de «anacoreta purificado pela solidão e pela oração». Não é difícil encontrar ligações entre o pregador excêntrico e o poeta marginal.

M.ª Ángeles Pérez López caracteriza do Cristo de Elqui como «un loco inocente, un extravagante santo popular que carnavaliza la palabra sagrada, pues es “el doble local y profano de Dios”, y hace irrisión de los sermones bíblicos. Al mismo tiempo, este desheredado de la fortuna, convencido de que suyo será el reino de los cielos, es el único que puede acercarse a la verdade n tiempos de gran tribulación, el único que, por su cercania a los débiles y humildes puede sancionar las conductas en un mundo dominado por la ignorancia, la soberbia, la coerción, el escepticismo o los prejuicios nacionalistas o antihispánicos». Ambíguo, contraditório, ambivalente, paradoxal, é uma personagem que serve um dos princípios fundamentais da antipoesia de Nicanor Parra: a debilidade dos discursos ideológicos, políticos e religiosos. Fazendo-se passar por louco, o sujeito poético contorna a censura ditatorial para dizer o que não pode ser dito:

VII
Os maridos deviam fazer um curso por correspondência
se não se atrevem a fazê-lo pessoalmente
sobre os órgãos genitais da mulher
há uma grande ignorância a este respeito
quem poderá dizer-me por exemplo
qual a diferença entre vulva e vagina
não obstante consideram-se com direito a casar
como se fossem especialistas na matéria
resultado: problemas conjugais
adultério calúnias separação
e como ficam esses pobres filhos?

XIV


Mentes que apenas podem funcionar
a partir dos dados dos sentidos
idealizaram um céu zoomórfico
sem estrutura própria
simples transposição da fauna terrestre
onde pululam anjos e querubins
como se fossem aves de capoeira
inaceitável de todos os pontos de vista!
suspeito que o céu se parece mais
com um tratado de lógica simbólica
do que com uma exposição de animais.

XXIII

E estes são os desafios do Cristo de Elqui:
que levantem a mão os valentes:
em como ninguém se atreve
a beber um copo de água benta
em como ninguém é capaz
de comungar sem prévia confissão
em como ninguém se atreve
a fumar um cigarro de joelhos
galinhas poedeiras ─ galinhas poedeiras!
em como ninguém é capaz
de arrancar uma folha à Bíblia
se o papel higiénico se acabar
a ver vamos se alguém se atreve
a cuspir na bandeira chilena
teria que cuspir primeiro no meu cadáver
aposto a minha cabeça
em como ninguém se ri como eu
quando os filisteus o torturam.



Nicanor Parra, in Sermones Y Prédicas Del Cristo De Elqui (1977)
Versão de HMBF

Sem comentários: