domingo, 20 de fevereiro de 2011

PAIXÃO E MORTE

Senhor, hoje é o aniversário da tua morte.
Há mil novecentos e vinte e seis anos estavas tu numa cruz
Sobre uma colina repleta de gente.
Entre o céu e a terra os teus olhos eram toda a luz.
Gota a gota sangraste sobre a história.
Desde então um rubro regato atravessa os séculos regando a nossa memória.

As horas passaram diante da ombreira extra-humana.
O tempo ficou cravado com os teus pés e as tuas mãos.

Aqueles martelos ainda ressoam,
Como se alguém batesse às portas da vida.

Senhor, perdoa-me se te falo numa língua profana,
Mas de outro modo não poderia falar-te pois sou essencialmente pagão.

Se por acaso fores Deus, venho a pedir-te uma coisa
Em versos rimados com cansaços de prosa.

Há no mundo uma mulher, quiçá a mais triste, sem dúvida a mais bela,
Protege-a, Senhor, sem vacilar; é ela.

E se realmente fores Deus e puderes mais que o meu amor,
Ajuda-me a guardá-la de todos os perigos, Senhor.

Senhor, estou a ver-te com os braços abertos.
Quiseras abraçar todos os homens e todo o universo.

Senhor, quando dobraste a tua cabeça sobre a eternidade
As pessoas não sabiam se era dos teus olhos que brotava a obscuridade.

As estrelas desapareceram uma a uma em silêncio
E a lua não tinha como esconder-se atrás dos outeiros

Rasgaram-se as cortinas do céu
Quando a voar tua alma passou

E eu sei o que então se viu; não foi uma estrela,
Senhor; foi a cara mais bela,
A mesma que agora mesmo verias
Se rasgasses a carne do meu peito.

Como tu, Senhor, tenho os braços abertos esperando por ela.
Assim lho prometi e me cansam tantos séculos de espera.

Caem-me os braços sobre a terra como crucifixos partidos.
Não poderias, Senhor, adiantar a hora?

Senhor, na noite do teu céu passou um meteorito
Levando um seu voto e o seu olhar até ao fundo do infinito.
Até ao fim dos séculos continuará rodando nosso anseio ali escrito.

Senhor, agora estou doente de verdade
Uma insuportável angústia mastiga-me o peito.
E esse meteorito assinala-me o caminho.
As nossas vidas amarrou num só destino.
Entrelaçou-nos a alma melhor que uma qualquer aliança.

Senhor, ela é débil e ténue como um ramo de soluços.
Olhá-la é uma vertigem de estrelas no fundo de um poço.

Os rouxinóis do delírio cantavam nos seus beijos,
Enchia-se de febre o tubo dos ossos.

Alguém plantou na sua alma vis ervas de dúvida e já não crê em mim.
Prova-me que és Deus e no máximo em três dias leva-me daqui.

Quero evadir-me de mim mesmo.
O meu espírito está cego e rodopia entre planetas cheios de cataclismos.

Também a minha vida sangra sobre a neve,
Como um lobo ferido que faz a noite tremer cada vez que se move.

Estou crucificado sobre todos os morros.
Uma coroa de espinhos crava-me o coração.

As lanças dos seus olhos ferem-me as costelas
E um ribeiro de sangue sobre o silêncio dir-te-á que passei.

Faz agora uns quantos meses, Senhor, abandonei a minha velha Paris,
Um estranho destino trazia-me a sofrer no meu país.

Faz frio, faz frio. O vento empurra o frio sobre os nossos caminhos
E os astros enrolam a noite girando como moinhos.

Senhor, pensa nos pobres imigrantes que vieram até à América de ouro
E encontraram um sepulcro em vez de caixas de tesouros.

Eles impregnam as ondas com o ritmo dos seus cantares.
A tempestade das suas almas é mais horrível que a de todos os mares.

Vê como choram pelos seres que não mais verão;
Gritam-lhes na noite todas as coisas que para trás deixaram.

Senhor, pensa nas pobrezitas que sofrem ao humilhar a carne,
As novas Madalenas que hoje choram a dor da tua madre.

Agachadas ao fundo da angústia da sua absurda Babel,
Bebem lentamente grandes copos de fel.

Senhor, pensa nas espirais dos naufrágios anónimos,
Nos sonhos truncados que se quebram em pedaços de asteróide.

Pensa nos cegos com as pálpebras cheias de música, choram pelos olhos do seu violino.
Eles esfregam os seus arcos sobre a vida numa amargura sem fim.

Senhor, vi-te sangrando nos vitrais de Chartres
Como mil borboletas que fazem os sonhos partir.

Senhor, em Veneza vi o teu roso bizantino
Num dia em que o ar se rompia de beijos e vinho.

As gôndolas passavam cantando como ninhos
Entre ramos de ondas, levando o nosso sorriso até ao Lido.

E tu ficavas sozinho em São Marcos, aspirando as selvas de orações
Que crescem a teus pés em todas as estações.

Senhor, vi-te num ícone, obra de um monge sérvio que ao pintar os teus espinhos
Sentia a alma repleta de andorinhas.

Que significas tu na história do mundo?
Há ano e meio discuti este tema num café de Moscovo.

Um sábio russo não te dava grande importância.
Eu dizia ter acreditado em ti durante a infância.

Uma bailarina célebre pela sua beleza
Dizia que tu és somente um conto de tristeza.

Todos te negaram e não consta que um galo tenha cantado.
Talvez Pedro, escutando-nos, tenha chorado.

E ao fundo de uma velha Bíblia o teu sermão da montanha
Continuava ressoando de uma maneira estranha.

Senhor, também eu tenho uma vida dolorosa, minhas recaídas e minha paixão;
Saltando meridianos como um tigre ferido, sangra e uiva o meu coração.

Reina o amor em todas as suas esplêndidas catástrofes internas,
Mil rubis trovejam no fundo do cérebro
E as plantas do desejo bordam o ar destas noites eternas.

Poeta, poeta escravo de aventuras e de algum sortilégio,
Como tu suporto a vida, o maior sacrilégio.

Senhor, a única coisa que vale na vida é a paixão.
Vivemos para um ou outro momento de exaltação.

Abre-se a meus pés um precipício de suspiros; detenho-me e vacilo.
Logo como um sonâmbulo atravesso o mundo em equilíbrio.

Senhor, que te importa o que digam os homens. Ao fundo da história
És um crepúsculo pregado a um madeiro de dor e de glória.

E o regato de sangue que brotou das tuas costelas
Ainda, Senhor, não foi estancado.


Vicente Huidobro, poema publicado originalmente na primeira página de La Nación (Santiago de Chile, 2 de Abril de 1926). Versão caseira do HMBF.