terça-feira, 28 de junho de 2011

A ARTE DE CAMINHAR

O pensamento de Henry David Thoreau (1817-1862) tem inspirado sucessivas gerações de amantes da natureza. Livros como Walden ou A Desobediência Civil (versões portuguesas na Antígona) justificam o acolhimento. Thoreau ficou conhecido pelas suas inclinações transcendentalistas, na linha de um Ralph Waldo Emerson (1803-1882) e, como tal, pelo interesse das possibilidades de uma vida em perfeita comunhão com o meio ambiente. Em 1845 construiu uma cabana junto ao lago Walden, aí permanecendo durante praticamente dois anos. Foi preso por se recusar a pagar impostos, viajou na direcção das comunidades indígenas, empreendeu várias jornadas que lhe permitiram arquitectar uma filosofia de índole nómada e ambientalista. Desobediência Civil surgiu em 1848, sob forma de palestra, e em 1854 publicou Walden, relato pormenorizado da sua vida na floresta. Trata-se, obviamente, de uma postura fortemente ligada ao taoismo, embora liberta de constrangimentos religiosos que, nos textos de Thoreau, são totalmente absorvidos pela inquietação do homem dividido entre a civilização e o apelo da floresta. A Arte de Caminhar, o texto que a Padrões Culturais agora publica em versão portuguesa sofrível e com uma capa que não lembraria ao diabo, data de 1851. Conferência proferida em Concord, apenas seria publicada em 1862. O texto reflecte de uma forma muito concisa grande parte daquilo a que já chamámos o pensamento de Henry David Thoreau. O elogio da errância, física e mental, tem na sua origem um combate feroz ao sedentarismo da civilização ocidental. É-nos hoje fácil entender as consequências terríveis desse sedentarismo, quer nas suas implicações directas na vida dos homens, quer nas suas implicações menos imediatas no meio ambiente. O engodo da propriedade privada prendeu o homem à terra, levando-o a acreditar num poder que, em última análise, apenas o transformou em escravo da preservação de um bem que o fixa, limita e o consome até pouco mais restar para viver do que esse pedaço de tempo livre que vamos logrando reivindicar junto da comunidade onde estamos inseridos. Não é difícil estabelecer pontes entre esta premissa e o elogio do ócio (que é, sobretudo, um combate feroz ao trabalho escravo) ou a crítica da família enquanto núcleo castrador e cristalizante da liberdade individual. Daí que Thoreau inicie o seu texto, precisamente, por esse alicerce mais que sensível do sedentarismo Ocidental: «Se estiveres preparado para deixar o teu pai e mãe, irmão e irmã, mulher, filhos e amigos, e nunca mais os ver − se tiveres pago as tuas dívidas, feito o teu testamento, deixado em ordem as tuas coisas e depois disso sentires-te [sic] como um homem livre, então acredito que estarás pronto para uma verdadeira caminhada» (pp. 17-18). Está visto que esta caminhada não é apenas física, mas também espiritual, é a caminhada da «estrada larga» de Whitman na direcção de uma cumplicidade inabalável com a vida selvagem. A prática começa, muito à maneira hindu, por excluir da mente os compromissos que a prendem à vida doméstica. Nesse domínio, é natural que as pessoas à nossa volta se cansem de nós, é perfeitamente compreensível que deixem de ter paciência para as nossas lamentações. O que não é tão compreensível é a sua complacência para com a nossa incapacidade de agir. Aproxima-se da tortura, a passividade com que nos suportam. Importa partir, pagar as dívidas (não as dúvidas) e caminhar na direcção certa, a direcção do oeste, «um outro nome para a vastidão da Terra Selvagem» (p. 49). O culto do selvagem não pode ser reduzido à simplicidade de uma nostalgia por um tempo eventualmente nunca vivido, ou por um louvor hipócrita e indigno disso a que hoje alguns tendem a apelidar de frugalidade. Este selvagem não exige sacrifício, mas sim inteligência; não pede qualquer tipo de conversão, acolhe-nos na pureza do essencial; não é uma terra mítica, é a ruína sobre a qual o Ocidente se ergueu. Há nesta Terra Selvagem uma estética que as mais selvagens das obras lograram representar: «Na literatura o que nos atrai é o que é selvagem. o tédio é apenas um sinónimo de domado. É a liberdade incivilizada e o pensamento selvagem em Hamlet e na Ilíada que nos arrebatam como em todas as escrituras e mitologias, que a escola não ensina» (p. 60). Quem pode evitar reconhecer nestas palavras a verdadeira separação entre o vigor das letras americanas e o tédio que fez/faz escola na Europa? Há também, a par de uma filosofia prática, uma estética implícita nesta arte de caminhar: «Não conheço nenhum poeta que consiga exprimir adequadamente este desassossego do impulso selvagem. Abordada sob esta perspectiva, a melhor poesia é insípida e branda» (pp. 62-63). O que está aqui em causa é, pois claro, o grito da liberdade contra o sufoco da vida doméstica, a selva versus a civilização, o bravio em oposição ao gado domesticado das cidades que a Velha Europa impôs ao Novo Mundo. Poesia, pura poesia, que nem a mais horrível das capas consegue enfraquecer.

7 comentários:

Anónimo disse...

Horrível? Aquele belo culo deve ser o melhor desse livrelho, pá!

hmbf disse...

Que comentário mais narcisista. É que o cu tem mesmo a tua cara.

Anónimo disse...

boa resposta!
mas sabe o "melhor"? é que a capa é filha da equipa de uma editora chamada "Padrões Culturais"!!!
como cometeram uma capa dessas num livro de Thoreau?
e a chamada abaixo do título do livro? como se fosse um livro para aspirantes a fisioculturistas!!! total absurdo...

Sandra R. disse...

gostei muito de ler este post. "Está visto que esta caminhada não é apenas física, mas também espiritual, é a caminhada da «estrada larga» de Whitman na direcção de uma cumplicidade inabalável com a vida selvagem." gosto muito da cidade. mas não gosto menos do campo.

Sandra R. disse...

acho mesmo belo este post. esta coisa do caminho, de fazer um sentido, de haver milhões de coisas que nos prendem, a terra, o sangue, os laços... a história. este é "o tema". quando se faz "uma caminhada", se não se abriu mão das coisas antes de começar a caminhar, e se se caminha durante muito tempo, acaba sempre por se perder alguma coisa. Nada nem ninguem é eterno. Estar "preparado para deixar (o teu) pai e mãe (...)", ser capaz de estar com eles, mas também ser capaz de estar preparado para os deixar, é a verdadeira liberdade. Gosto muito das minhas raízes, mas não gosto menos da minha liberdade. Este post lembra-me o filme "Primavera, Verão, Outono, Inverno... Primavera". Caminhar com uma mochila leve, só com o essencial. Ou carregar uma mochila cheia de pedras.

hmbf disse...

Magnífico filme. Obrigado.

Anónimo disse...

bela peida, fialho