terça-feira, 5 de julho de 2011

CAMINHOS DO ESPELHO




I

E sobretudo olhar com inocência. Como se nada se passasse, o que é correcto.

II

Mas a ti quero olhar-te, até que o teu rosto se afaste do meu medo como um pássaro da orla afiada da noite.

III

Como uma criança de giz cor-de-rosa num muro muito velho subitamente esborratada pela chuva.

IV

Como quando uma flor se abre e revela o coração que não tem.

V

Todos os gestos do meu corpo e da minha voz para fazer de mim a dádiva, o ramo que abandona o vento no umbral.

VI

Cobre a memória da tua cara com a máscara da que serás e assusta a criança que foste.

VII

A noite do casal dispersou-se com a névoa. É a estação das carnes frias.

VIII

E a sede, a minha memória é da sede, eu descendo, no fundo, no poço, eu bebia, lembro-me.

IX

Cair como um animal ferido no lugar que será de revelações.

X

Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida. Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Que entre o vento. Tudo fechado e o vento por dentro.

XI

Ao negro sol do silêncio douravam-se as palavras.

XII

Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo. Não, não estou só. Há alguém aqui que treme.

XIII

Todavia se digo sol e lua e estrela refiro-me a coisas que me sucedem. Que queria eu?
Desejava um silêncio perfeito.
Por isso falo
.

XIV

A noite tem a forma de um grito de lobo.

XV

Prazer de se perder na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver, fui em busca de quem sou. Peregrina de mim, fui até àquela que dorme num país ao relento.

XVI

De queda em queda incessante até onde ninguém me aguardou, pois ao olhar quem me aguardava outra coisa não si senão eu própria.

XVII

Algo caía no silêncio. A minha última palavra foi eu, embora me referisse à alba luminosa.

XVIII

Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento.

XIX

Deslumbramento do dia, pássaros amarelos pela manhã. Uma mão solta as trevas, uma mão arrasta a cabeleira de uma afogada que não pára de olhar-se ao espelho. Regressar à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos em guerra, hei-de compreender o que diz a minha voz.



Alejandra Pizarnik, in Extracción de la Piedra de Locura (1968)

Versão de HMBF

2 comentários:

DL disse...

A poesia ainda é a trepanação menos dolorosa - desde, pelo menos, que Bosch pintou a dita. E não teve direito a nobel da medicina.

Anónimo disse...

boa noite.
encontrei no deu blogue anterior uma referência que tinha guardado quase todas as revistas que fizeram parte do suplemento d'o independente. eu também. mas falta-me uma ícon que gostava imenso de ver a capa. ainda as tém?
apenas um scanner da capa ficaria contente...

deixo-lhe o meu email:patriciaagabriel@gmail.com.

obrigada
*p