quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

É COMO SE AQUI EU GRITASSE.

Para o RC.


Esta força não tem dono, ao pé dela qualquer material humano facilmente claudicaria. Repara no que resta do farol, uma construção em ruínas como qualquer um de nós, erguida para orientar e proteger aqueles que o mar engoliria fosse essa a sua vontade. Aqui dei os primeiros beijos dignos de memória, desse tempo pouco mais me resta do que uma mensagem gravada no barro que, de ano para ano, se vem desprendendo do corpo: amo-te, Sandra. (Era mentira. Muito mentimos nós às mulheres que nos amam com os namorados em casa.) E no entanto o mar persiste, obstinadamente como uma mão que escreve, as marés mantêm sua matemática indecifrável, tu dás às bruxas, aos anjos, às fadas a voz inaudível, os barcos atravessam as rotas quais rolhas de cortiça guiadas por bússolas, cartas, mapas, astrolábios, instrumentos inventados para nos libertarmos desta fraqueza essencial. Andamos agasalhados no medo e na tristeza, já nem a vertigem dos versos simula uma réstia de salvação, mas esta força não tem dono. Os promontórios que a travam podem passar-nos a mensagem de uma vida resistindo à morte, e em cada vaga que rebenta, em cada pingo de espuma cuspido com estrondo contra as barbas do vento, nós sentimos ser bem mais frágil do que aparenta o rochedo corroído pelo tempo. Sobre ele, amigo, fazemos nós e as gaivotas o ninho. Elas voando, nós sonhando. Até ao limite da possibilidade de sonhar.


São Martinho do Porto, 18 de Janeiro de 2012.

2 comentários:

margarete disse...

"Acabas de te tornar em mais um acto sólido da minha vida. Mais um jogo para inventar na minha memória, hei-de acrescentar-lhe os dias que não vivi contigo."

Fernando Nunes disse...

Conheci o Rui Costa em Coimbra, num centenário da República dos Cágados, no final dos anos 90. Passámos a cumprimentar-nos, vivíamos em sítios distantes, mas reconhecíamo-nos sempre nestas coisas da poesia. Falávamos o necessário quando nos víamos. O Rui era tímido muito embora fosse sempre muito simpático. Depois, recordo-me de o ver e falar com ele numa viagem de Intercidades para Lisboa ou então em sessões de poesia no Pinguim. Falava pouco mas gostava da presença dele, gostava de ouvir o que ele tinha para dizer. Vi-o também no concerto da Ana Deus e do Alexandre Soares, na festa de Serralves em 2004. No final, bebemos e estivemos na conversa. Ele gostava muito de música. Há muito tempo que não sabia nada dele e por mero acaso tinha trazido comigo o primeiro livro dele que me tinha custado um euro, numa Feira do Livro em Lagos. Recentemente escrevi um texto sobre este seu primeiro livro de poemas, do qual tinha gostado tanto do poema “Pão”. Ultimamente, andava curioso e a pensar como devia fazer para lhe mostrar o texto, ver a sua reacção, agora que tinham passados tantos anos. Entretanto, li a notícia que o Rui foi-se embora sem eu lhe ter mostrado o que escrevi. O Rui Costa era um bom poeta e uma pessoa bondosa. Obrigado, Rui!