Lei da Gravitação Universal de Isaac Newton:
todos os objectos são atraídos uns pelos
outros com uma força directamente
proporcional ao produto de suas massas e
inversamente proporcional ao quadrado das
suas distâncias.
— O homem hoje não vem — pensou a Árvore.
Disse-lhe o Vento:
— Vem ali ao fundo.
Era verdade.
Não era lento, ele, mas fazia muitas paragens pelo caminho. Às vezes olhava para o céu. Depois dava mais uns passos. Metia as mãos nos bolsos e endireitava as costas.
Estava sol. O homem vinha sempre que estava sol e sentava-se à sombra.
— Ele tem sombra dentro de casa, mas gosta mais da minha — pensou a Árvore.
Claro que sabia que não era assim. Dentro de casa não há sombra. Há um líquido qualquer mais imponderável que a seiva. Não chega a ser mais espesso do que o ar —pensou e disse o Vento, enquanto se enrolava nas folhas mais novas.
O Vento falava mas as folhas mais novas não se esforçavam para ouvir. Ficavam tesas esperando que ele fosse para outro lugar. Claro que também nem era isto. Ficavam, as folhas mais novas, à espera do que acontecia. E passados alguns dias habituavam-se ao Vento e deixavam de pensar nele. Aparentemente, essas folhas também não se preocupavam com o homem. Sentiam o estremeção provocado pelo encostar das suas costas ao tronco. Se já conseguissem falar, diriam ao Vento para ir mexer nos cabelos do homem.
O homem não tinha cabelos.
Trazia muita roupa. Parecia que andava sempre com frio. Como é que o Vento fala com um homem sem cabelos? Que homem tão antipático — disse o Vento.
O homem sorriu. Esticou mais as pernas.
A última noite deste homem foi uma noite sem sono. Não é normal um homem de quarenta anos apaixonar-se pela primeira vez. Sempre que sorria, Newton ficava sério durante vários anos.
A natureza é uma coisa estranha — disse-lhe essa mulher, alisando o vestido. — E ocupa muito espaço.
Ele saiu e ela ficou a espreitá-lo da janela com ar enfadado. Desde menina que não descia as escadas até à rua. Traziam-lhe botões de rosa triturados com limão e açúcar. Lia trinta páginas de livros por dia. Falando, fechava levemente os olhos. Lavava os cabelos todos os dias, mas não gostava de sentir a cabeça fria enquanto eles não secavam. Masturbava-se às seis da manhã da primeira segunda-feira de cada mês. Achava que o mundo era bonito, mas não suficientemente imprescindível. E não se comprometia com ele, porque lhe parecia impossível respeitar tudo o que não a fizesse sofrer um bocadinho. Considerava qualquer tipo de acção um abuso, porque sabia que em esforçando-se tudo podia conseguir. Por isso Newton caíra-lhe bem. Era o sujeito menos atraente com que em toda a sua vida se cruzara. Nem sedutor, nem sequer capaz de um veneno miúdo. Finalmente tinha um desafio crescido. Um pouco de incómodo dentro das paredes da casa perfeita sob o mundo. Não era perfeita: na sua órbita nem sequer chovia.
Newton à sombra de Árvore. O sol inchando sobre os campos acossados do país azul. Os animais. As lontras, pode ser, espreguiçavam-se a dois mil quilómetros plenos de água. Focinhos rasantes, a consciência de um habitat devastado. Aqui de novo: sombra sobre a testa de Newton. Agradou-lhe aquela jovem tão robusta de vontade. Depois este pensamento trouxe-lhe um temor: seria santa?
Não era por causa disso. Nem era católica, embora sua educação tivesse sido. Os seus pais levavam vidas normais: nem suficientemente discretos para não se preocuparem com o reconhecimento, ainda que anódino, da sociedade local, nem ambiciosos o bastante para se esforçarem na conquista de lugares proeminentes nas profissões ou na política. Era, provavelmente, como se sempre ela tivesse sido assim. Talvez em pequena já torcesse o nariz quando se tratava de ir ao jardim. E durante os dois anos em que esteve doente os professores iam a sua casa. Mas agora era uma mulher saudável; apenas as saias podiam ser um pouco mais curtas. Estamos no verão, ainda por cima, mas ela parece nunca ter calor. Nem frio, aliás. Santa não é, bem reparei como me olhou os pés, as pernas, subindo pela barriga e até ao pescoço e ao queixo. Depois hesitou, não me olhou os olhos. Mas não é santa nenhuma, nem fez nenhuma promessa. Nem tomou como missão a descoberta dos Rios, o isolamento introspectivo, uma forma invulgar de suscitar atenção. Sim, as saias mais curtas. O Vento explicou à Árvore que ia até ao vale.
Foi então que a maçã se desprendeu.
Caiu-lhe na cabeça com um poc! auto-confiante, saltou ligeiramente, e começou a rolar pela barriga do homem sentado que levantou o corpo e aproximou a mão do fruto condescendente que avançava.
A mão de Newton comandou os dedos e o olhar de Newton arregalou-se com a visão do objecto.
Newton pôs-se de pé, e caminhou como se movido por leis de gravitação universal.
Rui Costa, in Da Natureza — 1 + 9 contos, coordenação editorial de Sara Monteiro, ilustrações de Margarida Parente, Fundação Odemira, Março de 2009, pp. 13-18.
4 comentários:
Qual é a Editora?
Fundação Odemira
"A última noite deste homem foi uma noite sem sono"...
comove
nem quero imaginar...
csd
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