terça-feira, 6 de março de 2012

Breve ensaio sobre “Breve ensaio sobre a potência” de Rui Costa, por Rui Lage.

Comecemos pelo começo. “Breve ensaio sobre a potência”, o título que o Rui Costa escolheu para este seu livro de poemas não é um título acidental, nem gratuito. A presença do termo “ensaio” indicia desobediência à compartimentação de géneros, ao mesmo tempo que convoca para junto do poético a modalidade do pensamento – um pensamento vadio, serpenteante, que lida com a diversidade e com o transitório. João Barrento apelidou recentemente o ensaio de “género intranquilo”. Intranquila é adjectivo que assenta bem à poesia de Rui Costa. Os seus poemas não são dóceis, nem submissos, o seu discurso não visa a normalidade, o bom comportamento, o estilo do período: a sua escola é uma escola de exigência, de trabalho, uma escola de amplos e variados recursos que visam a fulguração, quer dizer, visam mostrar o avesso das superfícies do mundo e dos relacionamentos humanos, e não decalcar essas superfícies. Este livro, tal como os anteriores, está cheio de fulgurações. O autor é daquela espécie de poetas que violenta a linguagem, que se compraz em torcê-la, em deslocá-la para os sítios que entende: para sítios que precisam de ser desafiados. Ele também foi, em vida, um semeador de desafios. Em livros anteriores, detectava-se uma vontade de conspurcar o visível e o finito com as heresias da linguagem. Diante deste livro, ainda podemos detectar essa vocação, mas há diferenças. O Rui escolheu aqui a brevidade (estrofes de sete versos formando um texto contínuo) e escolheu o ensaio, isto é, escolheu uma rota sem roteiro, intuitiva, tacteante, que investiga os sentidos possíveis da existência, não tanto para captá-los, como para fazer da investigação o sentido do que é investigado: “e assim ensaiamos o livro entre a/treva e a luz”, lê-se no último poema, em jeito de chave, de que faz eco a belíssima gravura de Maria João Worm reproduzida na capa desta primorosa edição da Língua Morta.

Que dizer da “potência” sobre que versa o “breve ensaio”? A física ensina que a potência é a energia dividida pelo tempo, ou, dito de outro modo, a rapidez com que a energia é transformada. A quantidade de energia diariamente consumida ou dissipada por um ser humano ronda, em média, os 100w. Um televisor transforma, em média, 120w. Nada que não soubéssemos: que a fonte luminosa do ecrã de televisão leva desde há muito a melhor sobre a fonte luminosa do espírito. Onde se lê televisão leia-se, por metonímia, tecnocracia, essa que “Breve ensaio sobre a potência” repudia em toda a linha: “acreditas mais num ficheiro/ Microsoft do que nas salmodias da tua avó” (26, p. 30).

Deslocado da física para um livro de poemas, o conceito de potência convida a equacionar a existência individual em termos de repouso e actividade. Não no sentido mundano, antes no sentido de uma ética do repouso e da actividade, a maneira como se nos apresentam como opções existenciais, em complemento ou em alternativa uma à outra. E leva-nos ainda à questão do livre arbítrio e da liberdade: somos donos da nossa potência? As forças que nos envolvem e que nos dominam permitem orientar a nossa potência, a nossa energia, o nosso trabalho, para o bem comum e para a felicidade? Somos seres fadados para o repouso ou para a “eficiência económica” e para as “preocupações com a excelência” (24, p. 28)? Para o tempo da lentidão ou para o tempo da rapidez? Será esse o sentido último do ser humano: dissipar energia? Será, pelo contrário, consumi-la? Conservá-la? O livro responde: o sentido, o único sentido, é a partilha: “na serra aliamos as tendas, aquecemos/ música. A luz é da tribo, a Grande Pedra/ escuta” (30, p. 34).

Podendo ser definida como a rapidez com que o trabalho é realizado, a potência faz-nos ainda reflectir sobre o tempo. Hoje roubam-nos o tempo. Ou, se quiserem, o tempo foi amputado do tempo, porque estamos reduzidos ao instantâneo, ao imediato, à urgência, à velocidade, às oscilações de temperamento do NASDAQ, do Dow Jones, do PSI 20, da Moody’s. O tempo deixou de ter sentido: deixou de se medir pelo futuro (e em certa medida pelo passado), e tudo é escravizado ao presente, impossível de fixar, de reflectir, de ponderar: “Não tens tempo para saber o que andas/ a contar”, lemos no poema 25 (p. 29). Destituídos de tempo, ficamos destituídos de memória, de cabeça perdida, sem lugar para as imagens: o mundo arrumado num disco externo. Eis, na minha opinião, algumas questões fundamentais colocadas por Rui Costa neste livro que não chegou a segurar nas mãos, mas que pode auxiliar-nos a compreender o mundo que nos coube em sorte.

Uma vez que os interesses do autor deste livro iam muito além da poesia e da literatura, e entravam na ciência, na sociologia e na filosofia, não podemos esquecer a teoria aristotélica do acto e da potência que ressoa no título. Para Aristóteles, a potência é a capacidade de uma coisa se transformar em outra, porque não pode permanecer indefinidamente constante. A única coisa que pode existir sem ser transformada é, para o estagirita, o Bem. Claro que esse é também um predicado de Deus, totalmente acabado e perfeito, que não depende de mais nada a não ser de si mesmo. O contrário dessa perfeição auto-suficiente é o ser humano: somos nós. A semente é o exemplo paradigmático do objecto em potência, que pode, ou não, actualizar ou realizar uma árvore. O ser humano, como a semente, é sempre um ser em potência, um conjunto de possibilidades múltiplas e contraditórias.

A consciência de que o ser humano, sempre incompleto, sempre imperfeito, sempre indeterminado, tende constantemente a ser outro, a apresentar-se com novas características (sem que tenha de haver nisso infidelidade à sua substância), é algo que no meu entender está no cerne deste livro. Mas ensaiar a transformação e realização do ser exige uma incursão na floresta escura da existência, e pede um certo faro: o faro da luz.

Não há, salvo erro, poema deste “Breve ensaio sobre a potência” que dispense a palavra “luz”, símbolo por excelência do que nasce ou está para nascer, do que revela e do que se revela, do resgate, da redenção, da saída das trevas. Este livro começa por nos colocar debaixo das pálpebras o filme de um génesis mínimo e humilde. A luz começa por germinar a partir de coisas em repouso, de coisas elementares, de pequenos seres: água, peixes, plantas, pedras, nuvens. Mal se distinguem entre si os reinos animal, vegetal e mineral. A energia transformada e consumida ainda não é a das coisas complexas. Há uma espécie de nostalgia do momento inicial, do fio de luz originário, que, depois, ao atravessar a lente dos poemas, vai sendo desviado e desfocado. Não tardam a surgir indícios de impureza, primeiras tentações, primeiros desencantos com “caminhos isentos de afecto” (5, p. 9).

Ora, a partir do poema 9, “há um homem que pede para nascer”. Há, neste “Breve ensaio sobre a potência”, um homem a transformar-se, a sair do repouso, a manifestar-se, um homem em trabalho de parto. O que nos primeiros poemas se ensaia é a possibilidade de um novo ser, ou do renascimento num novo modo de ser. Ainda provisório, quase o efeito de uma evaporação, muito anterior à literatura, “este homem/ é um fantasma calmo descansando/ na margem. ainda não é o sonho” (9, p. 13), “por sobre a erva comove-se e/ os bichos escutam-no” (10, p. 14), “entretém-se/ com uma luz que lhe sai da barriga” (10, p. 14). Um homem ainda puro. E já ameaçado, vulnerável, surpreendido no centro da roda (12, p. 16). A partir do poema 13, a luz começa a desfocar, surge uma trama de destruição. A civilização do artifício, despossuída de alma, as ladainhas da eficiência e do “Sucesso” (24, p. 28), procuram abortar o nascimento, fazem adivinhar uma metamorfose violenta e dolorosa: os homens “refugiaram-se da sua própria/ condição de seres predestinados ao amor./ Inventaram mapas e destinos” (14, p. 18), queixam-se da alma que nunca souberam onde fica (17, p. 21), “fabricam-se punhais para matar/ com menos requinte do que as mãos” (19, p. 23). Instala-se a descrença: nas instituições, nas finanças, nos bancos, na tecnologia, na informação, nas universidades: porque só a dor ensina (22, p. 26). A luz que “provoca a primeira/ nostalgia”, do segundo poema do livro, dá lugar, num dos últimos, a“bolinhas de luz com expertise multimédia” (25, p. 29), e “ser adulto é quase impossível no mundo/ só imberbe” (26, p. 30).

Voltando às interrogações. Somos mais livres quando nos arrancamos ao repouso e nos transformamos, a nós e ao mundo, em energia, ou somos mais livres quando escolhemos o repouso, a imobilidade, quando nos furtamos aos ditames colectivos e às metas impostas, quando legitimamente optamos por desistir? “Ser dono dos homens ou escravo de mim”, como se lê no poema 13? Não é segredo que se pode resistir desistindo. Um objecto imóvel possui outro tipo de energia: a energia potencial, e é sempre, por isso, reserva de futuro, promessa de movimento. Temos aqui, apesar de tudo, uma poética da esperança, bem explícita no carpe diem do poema 30: “Vamos aprender a fabricar-nos alimentos,/ esquecer digitalmente o Sucesso, renascer as/ mãos na utopia. Neste mundo deus vai dançar” (p. 34).

É tentador afirmar que todas as misérias e alegrias humanas, toda a energia consumida ou dissipada, cessam com a morte. Na morte, ou em face dela, apenas há impotência. A energia deixa de ser dividida e repartida no tempo, porque o tempo deixa de existir. Quando se esgota a potência de um ser humano, quando toda a sua energia foi transformada, ele não é senão puro acto: na morte, o ser não depende de mais nada, é, de certa forma, algo totalmente acabado e perfeito. Como Deus.

Aqui estamos nós, depois da perda de um amigo, a transformar ainda a sua energia em tempo e em luz.


Rui Lage

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