sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A TERCEIRA MISÉRIA

Ainda antes do índice, Hélia Correia confessa a sua dívida para com, entre outras, as obras de Hölderlin, Nietzsche e Lord Byron. Tínhamos percebido a importância das mesmas na construção do poema A Terceira Miséria (Relógio d’Água, Fevereiro de 2012) - sequência em trinta e três breves estrofes, onde a voz daqueles poetas ecoa como uma espécie de fonte na qual a autora de Adoecer colheu a água para regar os versos. «Para quê, perguntou ele, para que servem / Os poetas em tempo de indigência?» (p. 7) Com esta dúvida, encontrada numa das mais belas elegias de Hölderlin, O Pão e o Vinho«Entretanto às vezes melhor parece / Dormir do que viver assim sem companheiros, ter / De esperar assim; e o que fazer e dizer entretanto / Não sei; e para quê Poetas em tempos de indigência?» (Hölderlin, Poemas, trad. Paulo Quintela, Relógio d’Água, 1991) —, inicia Hélia Correria uma reflexão poética onde a inquietação sobre o lugar e a função da própria poesia está sempre presente. Os tempos de indigência a que Hölderlin aludia eram, certamente, diferentes deste nosso tempo, embora a indigência permaneça e faça o seu caminho sobre um manto de ruínas. A ruína sobre a qual surgiu o romantismo alemão foi a de uma Grécia perdida, a Grécia porventura mitológica de uma relação com o sagrado desfeita pela espada do monoteísmo. Ouvi há pouco alguém comentar “Deus nos salve da anarquia” e não pude deixar de pensar, depois de ouvir o comentário e embalado por este livro, que nos salve antes a anarquia de Deus. Há, pois, uma indigência latente no nosso tempo que é em tudo idêntica à pressentida pelos idealistas e românticos alemães, a mesma que Novalis denunciava num texto essencial intitulado A Cristandade ou a Europa. A nostalgia de um sentimento religioso, alimentado pelo espanto e independente de visões literais do sagrado, está muito mais próxima da anarquia do que desse “valha-nos Deus” apregoado sem sentido nem substância. A ter que valer a todos, Deus não vale a ninguém. Fica arrumado numa caixinha de conceitos, acessíveis a meia dúzia de iluminados que sobre os néscios exercerão o seu poder. Ora, o sentimento que naquele tempo inspirou, digamos assim, os poetas alemães, assemelha-se, de facto, ao sentimento que agora inspira esta poeta portuguesa: «Nós, os ateus, nós, os monoteístas, / Nós, os que reduzimos a beleza / A pequenas tarefas, nós, os pobres / Adornados, os pobres confortáveis, / Os que a si mesmos se vigarizavam / Olhando para cima, para as torres, / Supondo que as podiam habitar, / Glória das águias que nem águias tem, / Sofremos, sim, de idêntica indigência, / Da ruína da Grécia» (p. 13). Esta ruína, tão espiritual quão material, acaba por ser simbólica de uma ruína civilizacional, porque estava ali, recordemos, o berço da democracia, a mesma democracia hoje arrasada pela ordem económica e financeira que tudo determina na vida das populações. Se Nietzsche matou o Deus subjugador do Vaticano, não foi para nos libertar do sagrado tanto quanto terá sido para nos libertar dos nossos próprios medos. Sendo inerente ao próprio homem, sendo humano, demasiado humano, o sentido do sagrado é a força que, pela fé, liberta o escravo do senhor, indica os caminhos múltiplos e diversos da espiritualidade afastando-nos de um materialismo ganancioso e assoberbado, vírus infalível de uma desumanização do mundo evidenciada pelos trilhos do consumismo. «Sim, foi essa / A primeira miséria, a deserção / Dos deuses. A segunda, a sua morte, / Já na morte de Pã anunciada / Pelo lamento dos bosques, o clamor / Lutuoso das ilhas do Egeu» (p. 24). Apartados dos deuses, alienados do sagrado, eis-nos então chegados à terceira das nossas misérias, «A miséria da interpretação / Que tudo trai» (p. 26): «A terceira miséria é esta, a de hoje. / A de quem já não ouve nem pergunta. / A de quem não recorda. E, ao contrário / Do orgulhoso Péricles, se torna / Num entre os mais, num entre os que se entregam, / Nos que vão misturar-se como um líquido / Num líquido maior, perdida a forma, / Desfeita em pó a estátua» (p. 29). É a miséria das multidões contra o primado do indivíduo, não do individualismo, mas da pessoa única e singular entre os demais que também são; é a miséria de um povo transformado em consumível, usurpado da sua dignidade humana, ou seja, dessa mesma dignidade fundada na relação com aquilo que se perdeu e hoje é ruína: o sagrado. Chamemos-lhe deuses ou natureza, chamemos-lhes Apolo ou Árvore, foi deles que nos tornámos órfãos tornando-nos, desse modo, tão insignificantes como hoje é o poema. Por isso voltamos a perguntar, como há duzentos anos,  para que servem os poetas em tempos de indigência?

3 comentários:

manuel a. domingos disse...

boa pergunta
arriscava uma resposta, mas seria uma resposta batida, cheia de frases-feitas
mas olha, que se lixe: servem para um gajo de esquecer dos tempos de indigência. pelo menos comigo resulta. e olha
que me tenho sentido uma
espécie de indigente

hmbf disse...

ou então, os poetas servem para escrever poesia. e a poesia, não servindo para nada, serve-se de tudo, incluindo de nós.

maria disse...

"A ter que valer a todos, Deus não vale a ninguém. Fica arrumado numa caixinha de conceitos, acessíveis a meia dúzia de iluminados que sobre os néscios exercerão o seu poder."

acordei a pensar nisto (sem te ter lido ainda). vou continuar a pensar, a ver se sai algo que faça sentido escrever.

mas o que sublinho, é a necessidade de nos interrogarmos. quer nos "tempos" de indigência ou de prosperidade.