De visita a Guimarães, passei pela Sociedade Martins
Sarmento para mergulhar a cabeça, literalmente, num barril de metáforas. Debaixo de água ouviam-se vozes, música, poemas, uma viagem subaquática com os pés na terra. Metaphoria é uma
exposição que resulta, segundo a curadora Sílvia Guerra, de «uma vontade de
pensar como é que a poesia, um dos géneros literários mais fortemente
enraizados na história de uma país como Portugal, permite a um povo preservar o
seu inconsciente, os seus sonhos, num momento em que eles lhe escapam». Quis a
força das circunstâncias que este trabalho conjunto, onde a poesia convive com diversas
manifestações artísticas, num diálogo sereno, mas proveitoso, em torno do
conceito de metáfora, fosse dedicada ao poeta Rui Costa. O catálogo reproduz
alguns textos do autor, entre os quais o poema que abaixo reproduzimos. Integram
a exposição obras/instalações de Ellen Leblond-Schrader, Joana Serrado, Katie Paterson
e Jason Dodge. O catálogo inclui ainda um CD com uma peça musical de Hélène
Breschand e Jean-François Pauvros, originalmente interpretada aquando da
inauguração. Metaphoria pode ser visitada até 10 de Novembro.
A TRAPEZISTA
Começou a subir aos telhados
Começou a resolver neles muito tempo.
(Primeiro, os dedos na janela mais acima.
Depois, era o cabelo que subia.
Um pulso a içar a alma para outra cidade.)
Daqui vê-se tudo.
Os gatos deitam-se e lambem-me os pés.
Os pés sobem molhados pela chuva.
Os homens congeminam negócios estendidos nas mulheres.
As crianças gritam dentro das casas quando os sonhos
lhes arrancam pedaços das costas.
Os homens caminham com quadros pendurados nos joelhos
As pessoas escrevem artigos nas revistas
sobre o que seria o mundo se alguém do outro lado as
ouvisse
E é então que eu saio
e sobre os ombros das árvores disponho a economia
cravando-lhe os dentes ou
roçando apenas o meu sexo
no trapézio
Inclino-me sobre a sua demência particular
neste dia emparedado entre sucessos e crisântemos
e as crises
e ouço as ruas onde lá em baixo uma pessoa
ajeita um pouco melhor os ossos
Aquela mulher fabricou uma cozinha resistente a tudo
atravessou os séculos assoberbada de electrodomésticos
inexpugnáveis – ao fim-de-semana envolvia-os em celofane
e espanava
um pouco melhor os filhos.
Mais à frente o parque onde as estratégias se apresentam –
o presidente à frente, seguido pelo hidrogénio ou o hélio
- conforme a posição do sol no buço da democracia –
e o écran reflectindo o écran e a
maresia.
Aqui no alto rodo os pés e alongo mais os braços.
Nos primeiros meses estendia-me com o corpo para baixo e
deixava
o sangue inundar a cabeça. Via manchas vermelhas da
menstruação por entre os amigos que prometia esquecer.
Eles traziam-me os seus corpos nus e eu aquecia as suas
unhas
cravadas pelo vidro.
Dizem: se os videntes permanecem firmes perante pequenos
tiranos
podem chegar a suportar a presença do incognoscível.
Todo o conhecimento é o resultado de uma deslocação.
Se é verdade que todos os caminhos são iguais?
Sim. Pois não te conduzem a lugar nenhum.
Se quiseres fazer como o feiticeiro índio da tribo iaqui,
perguntarás: e esse caminho tem coração?
Perdi a minha agenda de fenómenos electromagnéticos.
Não sei por isso de que lado esperar
este súbito irromper
da melancolia.
Rui Costa, in catálogo da exposição Metaphoria, curadora
Sílvia Guerra, direcção editorial, François Prodromidès, Guimarães – Capital Europeia
da Cultura, Outubro de 2012, p. 19.
Adenda: imagens da exposição aqui.
Adenda: imagens da exposição aqui.
3 comentários:
no telefonema que a minha mãe me fez antes de ontem, voltei a falar-lhe do Vicente, namorado da minha amiga, que foi a sepultar há uns meses; dizia-lhe que é espantoso o quanto os católicos se esquecem da vida dos santos, gente que está a tentar esquecer-se do que fez para se lembrar do que vai fazer.
Quando o Vicente chegou, tudo o que eu sabia era nada, embora soubesse das drogas, antes. O cuidado geral dos conhecidos comuns era a memória das drogas, esquecendo a leucemia que se instalou, depois.
(eu não quero perder a minha agenda, só o 'meu' mapa)
digo: é um poeta do caraças
Olá Henrique, Soube ontem da exposição pela MVG.Tive pena de não saber antes para ir ver. Ainda alguns dizem que "Portugal é Lisboa e o resto é paisagem".Errado. Beijinhos.PB
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