Luís Afonso (1965) é um conhecido cartunista português cujo talento
pode ser facilmente comprovado, por exemplo, nas páginas do Público.
Recentemente, a editora Abysmo publicou-lhe O Comboio das Cinco (Outubro de
2012). Não é um livro de cartoons, embora o género esteja presente à laia de
separadores que acompanham uma novela dividida em seis capítulos. Cada capítulo
corresponde a uma cena no argumento de um filme que o escritor pós-moderno
Lopes tenta escrever. Partindo do princípio amplamente reiterado de que os
livros são sempre melhores do que os filmes, Lopes entrega o seu livro, ainda por
escrever, ao realizador do filme que o adaptará. A ideia pode parecer algo
rebuscada, mas revela uma indubitável argúcia nos métodos do escritor pós-moderno:
fazer um filme baseado num livro que será influenciado pelo filme. Sentimo-nos
tentados a parafrasear o realizador a quem Lopes entrega o seu livro inacabado,
afirmando que há aqui muita coisa por analisar. A primeira coisa que nos vem à tona,
sem pretensões hermenêuticas escusadas, é a de que este "pretexto diegético" introduz-nos
no muito português universo da chico-espertice. De resto, o ambiente conjugal
que caracteriza a primeira cena pode muito bem ser lido como uma parábola
introdutória da relação que os portugueses mantêm com a pátria. Fugir, nem que
seja para Espanha, é solução que não está fora de questão, fugir de um país
onde os neologistas se revoltam contra acordos ortográficos num arrobo
nacionalista que nunca penalizou o mau uso da língua; fugir deste clima onde
todos são maus, horríveis, péssimos, excepto nós próprios e quem nos ouve dizer
que todos são maus, horríveis, péssimos; fugir de uma sociedade que se despreza
e maltrata diariamente, mas não suporta ver-se acusada do que diz de si própria
por quem a olha do outro lado da fronteira. Mas isto sou eu em pleno
delírio, armado em escritor pós-moderno, sem indicadores de qualidade literária
nas margens do post (ou deverei dizer entrada?). O livro de Luís Afonso não é
sobre nada disto, é uma mera paródia a um país com gente parada numa estação
onde jamais chegará o comboio por quem todos esperam. Chame-se Dom Sebastião ao
comboio e temos aqui uma versão pós-moderna do messianismo português, com
alguns desvios nada inocentes como o facto de toda a gente fazer de conta muito
a sério que o comboio chegará e que a estação funciona. País do faz de conta,
talvez, estação do faz de conta, quem sabe, mas de um faz de conta que se leva
suficientemente a sério para que todos os actores possam negar a si próprios a
condição de actores. Como o putativo suicida que se deita na linha do comboio
sabendo que ali não passará comboio algum. O que importa, afinal, é a intenção.
O logro não advém da mentira, como nos prova o recente caso do presumível burlão
Artur Baptista da Silva. O logro advém da verdade não ter a sustentá-la os
pergaminhos que a tornam credível. Ou seja, o pregão nunca é tão valoroso
quanto o pregador. Por isso tão facilmente resvalamos, neste país de faz de
conta, numa espécie de esquizofrenia atrofiante que nos inviabiliza toda e qualquer
compreensão da realidade. Porque a realidade já se confunde de tal modo com a
aparência que a aparência ameaça tornar-se na única realidade. Paradigma da
esquizofrenia é a cena IV d'O Comboio das Cinco, onde o presidente de um
clube entra em conflito com o presidente da Junta de Freguesia local por causa
da cedência de terrenos. Tudo muito banal não se desse o caso de ambos,
presidente do clube e presidente da Junta, serem uma e a mesma pessoa. A
dimensão hilariante deste conflito pode muito bem servir de exemplo, neste país
ziguezagueante onde toda a gente conhece toda a gente sem que ninguém se
conheça a si próprio. E esse talvez seja o verdadeiro problema de quem espera
pelo comboio das cinco: saber que ele não vem e, no entanto, continuar à
espera. Como se nada fosse.
1 comentário:
Realmente, Luís Afonso está, com Lopes, no seu melhor. Mas o texto desta entrada é explicitamente bom. O próprio Lopes gostaria, como pós-moderno.
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