sábado, 12 de janeiro de 2013

O MENTIROSO


Escritor prolixo, com mais de cem contos escritos num tempo em que os contos não se resumiam a meia dúzia de linhas, o nova-iorquino Henry James (1843-1916) foi durante largos anos desconsiderado pelos seus pares europeus. Não admira. Filho de Henry James Sr., que era amigo de Thoreau e Emerson, James tinha uma ideia do Velho Mundo e do seu puritanismo que, à época, dificilmente seria aceite sem reservas. Um dos temas implícito em muitas das suas obras é, precisamente, a oposição entre o Velho e o Novo Mundos, tendo este, aos olhos de James, tanto de rude e inocente quanto aquele tinha (tem?) de hipócrita e sofisticado. As origens eruditas permitiram-lhe estudar com tutores nas mais importantes cidades europeias, por cá permanecendo grande parte da vida. Em 1915 chegou mesmo a adoptar nacionalidade britânica, como forma de protesto contra a posição adoptada pelos Estados Unidos durante a Primeira Guerra Mundial. Em termos identitários, podemos dizer que Henry James viveu numa espécie de limbo. Sem ser europeu, também não se reconhecia como americano. Na apresentação de O Mentiroso (Sistema Solar, Outubro de 2012), o tradutor Aníbal Fernandes refere que Henry James se ressentia «com a objecção de vozes bem instaladas nos seus prestígios». Exemplos? H. G. Wells, Oscar Wilde, André Gide… Ainda assim, teve os seus admiradores. E o tempo impô-lo como um dos maiores escritores de língua inglesa. A novela O Mentiroso (115 pp.), escrita no ano da graça em que Pessoa nasceu, não o desmente. Oliver Lyon é um pintor que se desloca a uma localidade chamada Stayes para pintar o retrato de um tal Sir David. Aí se cruza com várias personalidades, entre as quais Everina Brant, antigo amor ainda por sarar, e o coronel Capadose, com quem Everina está agora casada. A trama da novela desenrolar-se-á, essencialmente, entre estas três personagens, com as suas características psicológicas bem delineadas e os vícios e virtudes de cada uma por determinar. Nada é óbvio em cada uma delas, por tudo parecer discutível. Esse é um dos grandes méritos de Henry James, saber reproduzir a realidade sem a esgotar numa única perspectiva, admitindo-lhe nuances diversas, dúvidas, sombras. A consciência que Oliver tem de si, por exemplo, não é a mais exacta. Denota alguma insegurança na avaliação que faz de si próprio e isso acaba por reflectir-se no modo como observa quem está à sua volta. Mr. Capadose é o mentiroso compulsivo que oferece pretexto à obra; e Everina, Mrs Capadose, a personagem ambígua que tanto o leitor como Oliver parecem querer desvelar. A natureza feminina, não sendo central neste texto, acaba por conferir à narrativa uma dimensão metafórica bastante subtil. Porque a questão central nesta obra, mais do que esse aspecto caricatural da mentira inofensiva, ainda que compulsiva, é a da natureza da arte. Oliver é pintor, um retratista célebre que consegue reproduzir na tela os ângulos menos evidentes da alma humana. Só assim entenderemos a atitude de Everina quando vê o retrato que Oliver fez do coronel Capadose. As mentiras do marido, disfarçadas com uma incensurável cumplicidade, sobem-lhe à superfície do rosto, os vícios da sua personalidade como que ficam evidentes, explícitos ao olhar humano. E isso é deveras perturbador. Esta leitura concorda com a fé que Henry James colocava na arte, cuja função seria fintar a hipocrisia do mundo dizendo a verdade. Mas esta verdade, paradoxalmente, só parece ser possível traindo a realidade. Daí que o famigerado realismo de Henry James seja tão questionável como qualquer outro ismo, não circunscreve uma leitura unívoca da arte e, muito menos, do mundo. É um realismo perturbado pela constatação de que representar é trair, embora esta traição se revele o caminho mais eficaz na direcção da verdade. Perigoso caminho, é certo, mas livre, imune ao amestramento que a mentira almeja quando resulta da conveniência. O período que atravessamos, não sendo especialmente vitoriano, tem muito desta ambiguidade. Note-se como cada vez mais a realidade se confunde com o universo virtual onde ganha expressão e adquire sentido na vida das pessoas, obrigando-nos, tantas vezes, a desmenti-la se pretendemos chegar à verdade do que quer que seja. É preciso desmentir a realidade para chegar à verdade. Caso contrário, abre-se a porta ao equívoco, ao mito, ao boato, por ser muito mais conveniente acreditar no preconceito e no estereótipo do que desmontá-lo com o sentido crítico de quem admite as várias faces de um mesmo objecto. Eis o reino da hipocrisia que apenas a arte logra desconstruir, isto quando também ela, institucionalizada, não se transforma em mais um elemento dessa hipocrisia.

2 comentários:

Anónimo disse...

Ótimo...

John

marta disse...

texto muito pertinente neste admirável mundo novo em que a arte é tida com um acessório de luxo e onde o papa abençoa via twitter...