O nariz na costura da roupa interior: é essa a natureza do escritor.
Philip Roth, Engano (p. 98)
Terminada a leitura de mais um livro de Philip Roth (n. 1933), repete-se a mesma sensação de desconforto. A questão, agora, é tentar compreender o porquê dessa sensação se repetir. Não será devido a um qualquer espanto provocado por histórias inusitadas. A crueldade de livros como este Engano (Deception, 1990), outrora publicado em Portugal pela Bertrand com o título Traições, está não no que mostra ou sugere, nem mesmo no que descreve ou representa, mas no jogo de ilusões que estabelece com o leitor. Este é, de resto, um dos temas centrais do livro. As personagens de Philip Roth são geralmente cultas, têm profissões criativas, reflectem em grande parte aquilo que supomos ser a vida do próprio autor. Fingidor por excelência, o escritor estabelece connosco uma relação ardilosa e cínica. Ele simula o verdadeiro para poder considerá-lo falso quando tal lhe convier, ele armadilha-nos a interpretação, oleia o quadro de modo a que nos escapem das mãos todas os juízos. Na obra de Roth, a verdade é um mito e a realidade é a fonte dúbia onde ele colhe material para os seus truques. O escritor coloca-se no lugar do ilusionista que tão depressa nos faz desaparecer das suas narrativas ambíguas como nos leva a crer sermos nós um reflexo das suas construções. A questão do adultério explorada neste livro aceita dois planos de leitura: o do adultério entre casais com uma vida doméstica destroçada pelo banal e pela rotina; e o adultério enquanto traição de uma suposta relação de verdade estabelecida entre o escritor e o leitor. Engano é um bom título, assim como não era mau o título Traições, mas Deception, palavra que também podia ser traduzida/traída por decepção, desilusão ou fraude, é bem melhor. No fundo, estamos aqui no campo da desilusão. Ou seja, a obra expõe-se de tal modo que nos desilude, no sentido de romper com esse pacto de ilusão existente entre o ilusionista e o seu público ao revelar-nos as fórmulas dos seus truques. Digamos que Philip Roth é uma espécie de “mágico da máscara”, angustiado, porventura, com as análises que a sua performance inspira. Tal estatuto permite-lhe colocar uma das suas personagens, que em tudo se confunde com o seu autor sem que o seja propriamente, a dizer: «Eu escrevo ficção e dizem-me que é autobiografia, escrevo autobiografia e dizem-me que é ficção, por isso, já que sou tão burro e eles são tão espertos, deixá-los a eles decidir o que é ou não é» (p. 181). Eles somos nós, os leitores, assim como os críticos, são todos quantos lêem estes livros e, por não resistirem à tentação de se fazerem incluir nos retratos deste modo representados, se fazem excluir da sua própria realidade num processo trágico de heterobiografia (seja lá o que isso for). Porque, bem vistas as coisas, a única razão para que estes livros nos causem desconforto só pode ser por reproduzirem (de um modo mais claro que a própria realidade) muito do que nós somos. O casal de adúlteros retratado nesta obra não foge à regra. Escrito todo ele em diálogo, o romance começa por ser um jogo. Não me refiro ao facto meramente irónico de a narrativa começar, precisamente, com um jogo. Refiro-me antes ao jogo estabelecido com o leitor. Ele reproduz o diálogo possível entre o escritor e os seus leitores, resgatados das suas vidas comezinhas, domésticas, insignificantes e superficiais para uma sala onde os desejos recalcados vêm à tona. O casamento enquanto instituição falhada é, neste livro, antes de mais, resultado de um desgaste provocado pelo arrastamento das relações. Roth revela o processo de saturação sem o descrever, tornando-o muito mais credível à medida que ele vai sendo exposto nos diálogos, mais ou menos dissimulados e cínicos, que as personagens mantêm entre si. É como se nos dissesse: sempre que te sugiro hipóteses de uma vida nova, abrem-se nos teus olhos luzes de esperança. Ora, esta esperança provém de um confronto com a futilidade do quotidiano. É um indício, se quiserem uma manifestação somática, do lixo acumulado dentro do ser que se viola a si mesmo impedindo-se, proibindo-se, censurando-se. Do ponto de vista do escritor, o problema como que se dissolve numa opção prática - «escrevo o que escrevo da maneira que o escrevo» -, mas do ponto de vista do homem a solução está longe de se ver cumprida. Talvez o adultério seja essa solução, uma pilula contra «a insatisfação doméstica», contra a «tirania da realidade» e o «efeito da erosão» no casal, uma fuga para a frente que não nos absolve do maior dos crimes que a vida nos impõe: sermos fiéis aos outros passando a vida a sermos infiéis a nós próprios. A sessão de tribunal a páginas tantas simulada pelo casal adúltero é paradigmática deste ambiente cínico instaurado pela obra, porventura a única resposta credível à complexidade da vida tal como a julgamos compreender. Se a questão se colocasse em termos de ganhos e perdas, diríamos que ganha o escritor onde perde o homem, ganha o homem onde perde o escritor. Mas nada disto é assim tão óbvio e simples, sobretudo para nós, leitores, os traídos.
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