domingo, 24 de fevereiro de 2013

FORT APACHE (1948)


Se quisermos ver índios bem caracterizados, devemos recuar às encenações de John Ford (1894-1973). Mestre do western, Ford soube levar a sério a dimensão artística do cinema sem perder o faro comercial. A chamada trilogia da cavalaria é representativa dos argumentos que lhe conferem um estatuto ímpar na história do cinema. Não sou especial discípulo do seu moralismo, embora facilmente me enamore pela magnitude do olhar com que emoldura as tragédias e os dramas da humanidade. Os apaches que aparecem neste primeiro tomo da famigerada trilogia são credíveis, é-lhes reconhecido um orgulho que os torna humanos sem os transformar em selvagens. Fort Apache é um filme que abre as cortinas da história dos EUA e permite-nos espreitar um povo humilhado, enganado, traído, desrespeitado pelas piores razões. Não estando no centro da narrativa, a tribo liderada por Cochise (1805-1874), com Geronimo (1829-1909) como companheiro de armas, acaba por ser a luz contra a qual se desenrola uma acção onde o homem branco é despido da farda que lhe confere autoridade. Mas esta farda também disfarça vícios, fraquezas, ambiguidades, dilemas, iniquidades de vária ordem. Situado no meio do nada, Fort Apache é aquele lugar para onde ninguém quer ir. Sobretudo o Tenente-coronel Owen Thursday (Henry Fonda), que se sente despromovido ao ter sido para ali destacado. Cativo das formalidades do exército, reverente à hierarquia militar, Thursday é um homem ferido pelo ressentimento. Ao saber que Cochise abandonara as reservas, pressente nesse gesto de rebeldia uma oportunidade para se afirmar. Empreende, então, uma investida louca e suicida, que o capitão Kirby York (John Wayne) tenta impedir. A palavra de York não tem o mesmo poder que a ambição de Thursday, sendo silenciada e desrespeitada porque estava fora de questão negociar com selvagens. Não encontrando a paz porto de abrigo na insensatez de quem manda, faz-se a guerra. As consequências, como em todas as guerras, serão trágicas para ambos os lados da barricada. Mas a inflexibilidade de Thursday, motivada pela sua ambição, opõe-se à sensatez política de Kirby York tanto no terreno da acção militar como no território das relações humanas. Acompanhado pela filha Philadelphia (Shirley Temple), o Tenente-coronel Owen Thursday sente-se atacado por outro flanco ao saber da paixão que a sua filha mantém pelo jovem segundo-tenente Michael O’Rourke (John Agar). Estas duas dimensões da vida, profissional e familiar, permitem a Ford explorar ao máximo as potencialidades de uma personagem que é, afinal, o campo de batalha onde tudo acontece. A vida no forte e nas suas imediações, a relação distante e conflituosa com os Apache, são elementos retratados com uma lucidez que traz no horizonte a intenção bem definida de aprofundar o carácter de um homem que é, em si mesmo, uma profunda contradição. Veja-se como a rigidez protocolar que enforma Thursday se revela inútil e traiçoeira. Inútil porque não responde eficientemente às adversidades, ao caos, à improvisação; inútil porque lhe escapa o acaso e o êxtase, o amor que une os homens e o respeito que atenua diferenças. Traiçoeira porque sitia o próprio Thursday, tornando-o escravo da sua ambição desmesurada. Ford desmonta, deste modo, os falsos heróis de um exército comandado por gente ávida e pretensiosa que aspirava a uma falsa glorificação. No meio do deserto, destacam-se os comportamentos (in)civilizados de uma sociedade emergente e a resistência de um povo deslocado da sua essência. Os índios, olhados com desdém e acusados de incivilidade, mostram-nos que a distância entre a barbárie e a civilização é curta. Daí o final tipicamente fordiano, com os jornalistas anotando o que julgam ter sido a heroicidade de um militar. Um retrato pendurado numa parede é tudo o que resta a quem pretenda ser lembrado no futuro, resguardado dos verdadeiros factos pelo passe-partout da História.

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